Em 2011, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) terminava o ano com a triste marca: apenas 58 imóveis rurais decretados de interesse social para fins de reforma agrária, totalizando uma área de 101.960 hectares, com capacidade de assentamento estimada em 2.821 famílias. Considerando os dados a partir do ano de 1995, este fora o pior ano até então. Em 2012, a Autarquia infelizmente estabeleceu um novo recorde, “superando” o índice negativo do ano anterior: foram apenas 28 imóveis rurais decretados de interesse social para fins de reforma agrária, totalizando uma área de 45.663 hectares, com capacidade de assentamento estimada em 1.253 famílias. Nunca antes, nos últimos 18 anos, o Incra tinha apresentado números tão pífios quanto estes.
Apesar disso, caminhamos para o estabelecimento de um novo recorde em 2013. Até o momento, a três meses para encerrar o ano, nenhum decreto foi assinado pela presidente da República declarando algum imóvel rural de interesse social para fins de reforma agrária. Se confirmar este índice, será o pior de todo o período democrático, que até agora tem no Governo Collor, no ano de 1992, o resultado mais baixo: de apenas 4 decretos para esse fim.
Veja, no quadro abaixo, os dados de desapropriação de imóveis rurais desde 1985.
É diante desse resultado nefasto, que os Peritos Federais Agrários, engenheiros agrônomos lotados no Incra, lançaram esta campanha, intitulada de Falecimento da Reforma Agrária. Com veiculação em várias capitais brasileiras, a categoria divulga a Nota de Falecimento que está no vídeo a seguir:
Ironias à parte, a campanha vem trazer à sociedade uma triste realidade: a de que a reforma agrária está paralisada. As causas são muitas, mas as evidências mostram que o descaso com a gestão das terras do país é uma decisão de governo. Só não tiveram coragem ainda de dizer isso à sociedade.
É claro que o processo de obtenção de imóveis e a criação de projetos de assentamento podem – e devem – ser aprimorados continuamente, agregar novas técnicas e tornarem-se mais eficientes e viáveis. No entanto, o que se viu nos últimos anos foi uma redução dos recursos destinados à autarquia, a publicação de portarias para paralisar o processo de obtenção (pois necessitam de normas técnicas internas que ainda não existem), e tiram a autonomia das superintendências regionais.
Em fevereiro deste ano, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) publicava no Diário Oficial da União as Portarias nº 5, 6 e 7, com o dito objetivo de conferir maior qualidade ao processo de obtenção de terras para a reforma agrária (já que o órgão responsabilizava o fracasso da reforma agrária ao processo de obtenção), mas as publicou sem nenhuma discussão com o corpo técnico do Incra. Nada se alterava quanto às políticas agrícolas para os assentados da reforma agrária: créditos, casas, estradas, comercialização, entre outras.
Dessa forma, estas portarias, que aparentemente objetivavam conferir maior qualidade ao processo de obtenção de imóveis rurais, na realidade criam obstáculos, tornando o processo centralizado no MDA, com a clara intenção de não deixá-los fluir e, consequentemente, emperrar a obtenção de terras. E, de fato, acabaram por ter um grande sucesso nesta empreitada. Conseguiram o que queriam: parar a reforma agrária. A inoperância da atual gestão do Incra, sob a guarda das portarias do MDA, criou uma atmosfera de paralisia para a reforma agrária no Brasil.
Criado em 1970, durante a ditadura militar, o Incra já foi um dos mais prestigiados órgãos federais. Ele representava e resumia em si a presença do Estado nas regiões mais longínquas, junto às populações na Amazônia, por exemplo. Naquela época, seu foco foi a colonização em áreas antes inabitadas ou com a presença unicamente de indígenas. O Exército abria as estradas e o Incra levava produtores para ocupar as áreas da Amazônia Legal. Estavam ligados ao órgão desde engenheiros agrônomos a padres e sua atuação foi responsável por criar muitos municípios e até boa parte do Estado de Rondônia. Àquela época, o lema era “integrar para não entregar”. Em detrimento do conhecimento da malha fundiária, que também lhe cabia, o Incra focou suas atividades quase que tão somente na colonização, nas décadas de 70 e 80, e, posteriormente, na Reforma Agrária.
Em 2013, a Autarquia completou 43 anos vivendo uma crise sem precedentes em toda sua história. Falta tudo, desde equipamentos a servidores. Os que nela trabalham amargam as mais baixas remunerações do serviço público federal e vêem o órgão precarizado. Em setembro, por exemplo, os engenheiros agrônomos suspenderam as atividades porque o órgão não vem fornecendo sequer os equipamentos de proteção individual (EPIs), para a realização das vistorias de imóveis rurais, ficando desprotegidos desde a superexposição ao sol a lesões e picadas por animais peçonhentos. O SindPFA já vem denunciando a situação precária do órgão: veja nota divulgada pelo Sindicato no início de setembro.
Mas não foi só a redistribuição de terras que definhou nos últimos anos. A já negligenciada área fundiária pena com sistemas obsoletos que foram responsáveis, entre outros absurdos, por criar um sobrecadastro de 58 milhões de hectares de terras. Trata-se de uma área que equivale ao território do Estado de Minas Gerais. Segundo dados obtidos pelo SindPFA, com base na Lei de Acesso à Informação, em janeiro de 2013, havia municípios em que a área cadastrada no sistema do Incra superava em até 10 vezes sua própria área física: veja a notícia. Mas pouco ou nada se avançou desde então.
Vimos movimentos sociais já sugerindo que o governo feche as portas do Incra, diante da “inoperância” pela paralisação das atividades. Estudiosos também já denunciam na imprensa a morte do programa de reforma agrária: vide artigo do Prof. Zander Navarro.
O Presidente do Incra, Carlos Guedes de Guedes, vendeu para o centro de governo a promessa de que resolveria as questões, principalmente as que dizem respeito ao cadastro do Incra, mas a realidade de colapso interno a que a instituição está submetida mostra que as metas que tanto propalou dificilmente serão cumpridas. A falta de estrutura para as atividades e a desmotivação sem precedentes de seus servidores, devido, principalmente, à falta de perspectivas institucionais e profissionais, são contradições às promessas do presidente da autarquia, que finge não conhecer a realidade.
A direção do órgão tem afirmado que o Incra será uma referência mundial em governança fundiária. Tem conversado com organismos internacionais e viajado pelo mundo para fazer essas afirmações, mas a realidade o contradiz.
Como dito, o Incra vive uma desmotivação sem precedentes entre seus servidores devido, principalmente, à falta de perspectivas institucionais e profissionais. A instituição está sendo submetida a um colapso interno pela redução de seu quadro de servidores, baixa remuneração e desestímulo geral daqueles que ainda permanecem atuando no órgão, aliado ao grave problema de falta de gestão.
Corroborando a política de paralisia e descontrole, o descaso do governo federal com a questão agrária e a incompetência administrativa da direção do Incra, foram responsáveis por manter os salários dos Peritos Federais Agrários nos mais baixos patamares em comparação às carreiras assemelhadas dos últimos onze anos.
Os salários dos engenheiros agrônomos do Incra, que eram idênticos aos salários dos engenheiros agrônomos do Ministério da Agricultura (MAPA) no ano 2000, hoje representam apenas 40% do que recebem os colegas do MAPA. O governo apresentou em 2012 e em 2013, uma proposta, dita como diferenciada, mas que prejudicava a estrutura de carreira, reduzindo o percentual do vencimento básico e aumentando a amplitude total da remuneração, entre a base e o topo, ganhos obtidos em outras negociações. Além disso, era desfavorável aos profissionais em início de carreira e aos aposentados e aumentava, ainda mais, a distância das carreiras assemelhadas. As negociações salariais com a categoria não prosperam desde 2010, devido a grande intransigência do governo (saiba mais sobre a Campanha Salarial dos PFAs aqui).
Foi neste cenário de descaso, que mais de 70 pedidos de exoneração e dispensa foram feitos nos últimos dois meses por PFAs que ocupavam cargos de chefia e funções no órgão, devido o descontentamento com a atual gestão e ao fracasso das negociações salariais (saiba mais sobre a entrega de cargos nesse link). A evasão destes profissionais, muitos com anos de experiência na área, faz o Incra perder significativamente em recursos humanos e qualificação técnica, quadro que não se constrói da noite para o dia.
Não bastasse isso, a direção vem demonstrando avidez em retaliar a categoria pelas denúncias que vem fazendo a respeito do descaso com a política agrária e por afrontarem publicamente a intransigência do atual governo e de atual gestão do Incra, que não foi capaz sequer de defender os servidores nem a missão do órgão dentro do próprio governo. Demonstra total incapacidade de liderar qualquer equipe.
Os péssimos resultado da reforma agrária são evidências para o fim da autarquia, que, infelizmente, parece caminhar para extinção. E a responsabilidade pelo desmonte do Incra é inteiramente da sua direção e do governo que decidiu fazê-lo. Os Peritos Federais Agrários rechaçam qualquer tentativa da Presidência do Incra – e dos que ingenuamente engoliram seus discursos vazios – de imputar-nos esta responsabilidade.
Enquanto há lentidão do governo em dar uma resposta adequada a essa situação, a soberania da nação está ameaçada cotidianamente com os avanços gulosos nas aquisições estrangeiras das melhores terras agricultáveis do país ou mesmo de grandes áreas com potenciais naturais e minerais, muitas delas situadas na Amazônia Legal.
No mais recente levantamento do Incra sobre a aquisição de terras por estrangeiros, ainda de 2012, com base no ainda muito pouco confiável Sistema Nacional de Cadastro Rural – SNCR, o Brasil possuía 34.300 imóveis rurais cadastrados em nomes de estrangeiros, o que totaliza uma área de 4,5 milhões de hectares. Outros 9.262 imóveis estariam em processo de depuração quanto à nacionalidade. Acontece que o sistema é tão precário que não consegue sequer precisar em quais municípios estão localizados os imóveis, sem que haja uma apuração profunda – demorada e dispendiosa – pelo Serviço Federal de Processamento de Dados – SERPRO.
Este problema, então, vai desde o desconhecimento das posses registradas de 1994 a 2010, passa pela omissão dos cartórios e pela ineficiência dos sistemas cadastrais do Incra, e supõe-se que chega até a utilização de “laranjas” (brasileiros) por pessoas ou corporações estrangeiras para a titulação e que, com a atual estrutura de controle, dificilmente serão descobertas.
Mas esse é só um dos problemas que provam a ineficiência do atual Incra. A política agrária brasileira está obsoleta, e o Incra agoniza. É necessário reinventá-la, nem que para isso o governo precise criar um novo instituto de terras, que faça a governança agrária que o Incra não foi capaz de fazer. Não dá pra manter um Instituto de Colonização e Reforma Agrária, que já não cumpre sua missão: não faz mais colonização nem reforma agrária, contrariando seu próprio nome.
Os incessantes conflitos agrários, grilagens, fraudes nos registros, a especulação no mercado de terras, a ausência de regularização fundiária na Amazônia, no Nordeste e nas faixas de fronteira e a fragilidade dos sistemas cadastrais do Incra são evidências do desconhecimento do Estado brasileiro da questão agrária, que colocam em risco até a soberania nacional, tanto falada hoje em dia.
Uma nova política agrária é necessária e urgente. Conheça a campanha do SindPFA por uma nova governança agrária.
Por KASSIO ALEXANDRE BORBA
Coordenador Executivo no SindPFA
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