Quinta-feira, 21 de Novembro de 2024

Reforma agrária para o desenvolvimento do Brasil
Por Maria Lucia Falcón*

Por Convidado(a)

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*Maria Lúcia de Oliveira Falcón presidiu o Incra entre 2015 e 2016. É engenheira agrônoma, mestre em Economia, doutora em Sociologia, pesquisadora visitante na Universidade de Santiago de Compostela e professora eventual da ENAP. Foi professora associada da Universidade Federal de Sergipe; assessora da Presidência do BNDES; secretária de Planejamento de Aracaju; de Desenvolvimento Urbano do Estado de Sergipe; e secretária Nacional de Planejamento e Investimentos Estratégicos do Ministério do Planejamento.


Fui presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) entre 30 de março de 2015 a maio de 2016. Pouquíssimo tempo para pôr em execução qualquer plano de trabalho, porém tempo suficiente para conhecer os grandes processos, os instrumentos básicos e a sua organização gerencial. Tempo que valeu por muitos anos de academia, onde aprendi muito sobre a sociedade brasileira, suas instituições e costumes e sobre a política pactuada nos três níveis federados de governo. Também foi tempo bom de conhecimento humano, formação de equipes com propósito, de interagir com lideranças responsáveis com sua gente e seu país, e outras nem tanto.

Convidada pelo Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários (SindPFA) a escrever sobre aquela experiência, devo começar agradecendo a todos e todas que comigo caminharam, aos nossos coordenadores de política agrária no então Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) – Patrus Ananias e Fernanda Coelho – e aos movimentos sociais que lutam pela agricultura familiar e pela reforma agrária no Brasil. Na verdade foi um trabalho coletivo, como tudo nessa vida, onde a humildade é o começo da confiança para enfrentarmos os desafios da luta diária.

A política de gestão da terra, sua propriedade e uso, no Brasil, tem sofrido durante os 50 anos de existência do Incra os efeitos da ausência de um plano de desenvolvimento nacional. Quando eventualmente houve, senão um plano, mas ao menos uma visão sobre qual papel o País deveria assumir na divisão internacional do trabalho, a missão do Incra ficou mais clara e ganhou impulso – ou foi paralisada e colocada no final da fila das prioridades.

Em 2015 encontrei no Incra uma organização com forte personalidade, decorrente da sua história marcante, com muitas dúvidas sobre seu futuro e muitos traumas sofridos pela permanente tensão entre poder local e poder federal, que desenharam muitas maneiras de fazer a reforma agrária, segundo as regiões do país. Os movimentos do campo foram levados a uma luta sem descanso pelo direito à terra e ao desenvolvimento. Visitei e homenageei os tombados nessa luta no Pará, também com lideranças quilombolas e agricultoras familiares na Marcha das Margaridas. No dia a dia, estávamos sempre em auditorias, judicializações e conflitos sem fim. Nesse campo de desafios gerenciais, destaco que sobrevivemos a um acórdão do TCU que paralisou as políticas de assentamento, regularização e crédito; também foi o ano do golpe que tirou a presidente Dilma Rousseff do governo federal, ou seja, foram meses de grande crise política.

Aspectos muito importantes para a reforma agrária e para o Incra estavam passando despercebidos, com enorme prejuízo para a missão. Coloquei as ideias numa narrativa e passei a viajar o país com um projeto que chamamos de “Incra itinerante”. O objetivo era, ao escutar os funcionários, gestores e lideranças sociais em cada estado, unificar discursos e propósitos para iniciar uma reestruturação da autarquia e da política agrária.

Os pontos principais da nossa proposta eram: 1) Ao Incra, cabia gerir um banco de dados georreferenciado sobre a terra rural no Brasil, o que é muito maior que apenas gerir as terras destinadas à reforma agraria. Se o País tivesse clareza sobre os caminhos para o desenvolvimento, o ativo terra é o primeiro dos fatores de produção a ser considerado, seja para fins de produção de alimentos, de matérias-primas industriais, de preservação de biomas ou da sociobiodiversidade com os povos tradicionais, quilombolas etc. Era urgente colocar esse banco de dados em sistema informatizado, em condições de uso, com segurança e qualidade, para servir tanto à reforma agrária quanto ao desenvolvimento regional. 2) As terras que o Incra compra e vende compõem um mercado poderoso, que interfere no mercado de terras não apenas local ou regionalmente, mas nacionalmente. Esses processos de desapropriação ou compra eram constantemente alvo de interferência e especulação, como qualquer outra mercadoria de valor. Era urgente organizar e informatizar os processos de aquisição de terras do Incra, com a base de dados atualizada por preços de mercado, junto aos cartórios, e prever os impactos da reforma agrária ou outras compras e desapropriações feitas pelo governo federal. 3) Os trabalhos dos técnicos em campo eram sempre arriscados, seja por efetivas ameaças de violência física ou por tentativas de corromper as decisões e laudos. Era urgente adotar tecnologias remotas de avaliação e análise dos imóveis, incorporando a dimensão econômica integrada ao processo, verificando em que contexto social e produtivo o imóvel se insere; checar qual a sua real capacidade de dar às famílias a possibilidade de produzir com mais valor agregado, seja por indústrias e arranjos produtivos já existentes ou que poderiam ser implantados, proximidade de mercados e serviços, observando a rede de cidades. 4) Os trabalhadores do Incra precisavam ser valorizados e qualificados para carreiras novas, com habilidades em novas tecnologias como análise de imagens de satélites e drones, mais um pacote de gestão segura de dados, que em 2020 se chama gestão de big data, uso de blockchain para impedir fraudes nos bancos de dados, inteligência artificial para automatizar o máximo possível os processos técnicos, jurídicos etc. 5) Os beneficiados pela reforma agrária, os acampados e os quilombolas deveriam contar com um aplicativo para facilmente verificar o andamento dos seus processos, dar total transparência aos valores, indenizações etc; isso só seria possível com a informatização dos processos, dos cadastros das famílias, do conjunto dos dados necessários, desde o cadastramento das famílias até a sua titulação definitiva. 6) por fim, havia a necessidade de atualizar a legislação e as normas operativas para tudo isso, o que em parte foi feito e publicado em 2016.

Investimentos importantes precisavam ser feitos e parcerias tecnológicas necessitavam ser construídas. Chegamos a assinar termos de cooperação técnica com a Agência Espacial Brasileira e Embraer para construirmos nosso banco de dados de imagens e até mesmo, no futuro, nosso satélite próprio, em possível parceria com outros ministérios, como a pasta do Meio Ambiente.

Iniciamos cursos com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Campinas para nossos peritos agrônomos aprenderem a analisar imagens de satélites para avaliar um imóvel; apresentamos carta consulta ao Fundo Amazônia para comprar os primeiros drones; e apoiamos fortemente a diretoria que cuidava da tecnologia do banco de dados com cadastro sobre as terras brasileiras. Também chegamos a iniciar dois processos importantes para a reestruturação do Incra: construção de novas carreiras e estrutura gerencial – com concurso interno para as superintendências estaduais – junto ao Planejamento; e junto à Fazenda e Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) levamos a proposta da constituição do Fundo para desenvolvimento da agricultura familiar e reforma agrária, com recursos do novo Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) (proposta do SindPFA) e das taxas existentes sobre a agroindústria e não recolhidas plenamente ao Incra, que nos daria autonomia de voo para iniciarmos os investimentos massivos em industrialização, capacitação, tecnologia e gestão.

Além disso, também como preparação do Incra para a transformação ecológica e digital da economia, iniciamos na diretoria de planejamento estudos para alimentar o Fundo a ser criado com captações no mercado de capitais de créditos de carbono ou equivalente, via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), lastreados em nosso maior ativo: terras e sol, ou seja, captura de carbono e energia renovável.

O primeiro projeto integrado de gestão sustentável das áreas de reforma agrária seria o vale do São Francisco, com geração de energia solar nos assentamentos, permitindo sua industrialização e venda de energia, elevando a renda das famílias. O projeto conceitual que apresentamos para os governos da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco, além da própria Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e Ministério da Integração, recebeu ampla aceitação.

Todas essas medidas iriam permitir, sem apelar ao Tesouro, financiar a nova reforma agrária inserida no contexto dos APLs agroindustriais, sustentáveis, agroecológicos, em comércio de proximidade nas redes de cidade e com promoção da segurança alimentar e da renda das famílias.

Outra grande mudança de concepção foi a inserção das áreas de quilombos como enquadráveis nos benefícios do desenvolvimento produtivo, à semelhança das áreas de assentamentos, tornando os quilombos beneficiários de crédito para a produção, industrialização e os jovens quilombolas também como beneficiados pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) – iniciativa voltada para a juventude que vive na área rural, como assentados da reforma agraria ou da agricultura familiar.

Claro que as pessoas são o início e fim de toda a reestruturação proposta, então os diálogos intergeracionais dentro do Incra e nas famílias beneficiadas se materializam na educação continuada. Destaque ao Pronera, onde também conseguimos aprovar uma atualização normativa no Conselho Gestor permitindo financiar, além do ensino, também a pesquisa aplicada para resolver com os jovens do Pronera e seus professores problemas reais de suas comunidades, seja no campo produtivo ou social, incorporando inovação nos eixos de trabalho do programa.

Falei em defesa desse projeto de Incra por onde passei, da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre reforma agrária até as sedes de movimentos sociais, bancos, empresas e ministérios diversos. Posso dizer que recebemos a todos segmentos sociais e políticos, gestores e lideranças sociais que desejaram dialogar. Visitamos os demais Poderes e Tribunais de Contas, Ministério Público e Parlamento e tentamos conquistar apoios para a reestruturação do Incra e da política agrária.

O ano de 2020 não mostra estatísticas favoráveis ao nosso Brasil. Além dos mais de 100 mil mortos pela Covid-19, no campo as coisas não estão nada bem. Desmatamento e conflito, sonhos paralisados. São recordes sucessivos de desmatamento da Amazônia, com aumento de 25% de janeiro a junho deste ano (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE), comparado ao mesmo período do ano anterior. E aumento dos conflitos no campo. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2019 foram 1833 conflitos, 23% a mais que no ano anterior, o dado mais elevado dos últimos 15 anos.

Mas ainda acredito na força dos jovens, das lutas sociais e da história, que sempre será um carro alegre e cheio de gente contente. O Incra que estará presente durante as transformações do Brasil será um pouco aquele Incra que tentamos construir em 2015-2016. Quem sabe um dia tudo isso será um consenso e será realizado?