Em 13 de agosto, a Diretoria de Gestão Operacional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) anunciou, por ofício circular (1), o início da utilização do Sistema de Registro Eletrônico de Frequência (Sisref) pretendida a partir de 1º de outubro de 2021, em todas as unidades da autarquia. Se por um lado a implantação do sistema busca cumprir uma determinação legal (2) e atender a pressões de órgãos de controle, o momento e a forma com que a autarquia faz são inoportunos, de modo que o sistema já nasce antiquado.
O advento de tecnologias na gestão pública é muito bem-vindo, vide o Sistema Eletrônico de Informações (SEI), em uso no Incra e em quase toda a Administração Pública Federal. Sua implementação foi crucial para a boa continuidade dos trabalhos do Incra neste período de distanciamento social. Nada obstante, quando se trata de controlar o trabalho de servidores, já está amplamente comprovado que o simples controle rígido de presença não se traduz em eficiência, tampouco garante produtividade, especialmente em atividades de maior complexidade intelectual que sequer exigem presença física numa sala. Organizações públicas e privadas que têm uma visão moderna das relações de trabalho e da produtividade já entenderam isso há muito tempo.
Não por outro motivo que, desde 2017, este Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários (SindPFA), em conjunto com a Associação Nacional dos Servidores Públicos Federais Agrários (Cnasi-AN), provoca o Incra para a regulamentação da jornada de trabalho dos servidores, dispondo sobre pontos como jornadas ininterruptas, banco de horas, teletrabalho e afins e estabelecimento de metas (3).
Quando isso sequer era cogitado no Incra, e muito antes da atual pandemia, a modalidade do teletrabalho já estava em expansão no âmbito da Administração Pública, com muitos resultados positivos. Exemplos não faltavam, já naquela época, e vários foram elencados: Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), Controladoria-Geral da União (CGU), Tribunal de Contas da União (TCU), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), entre outros, até mesmo órgãos com a mesma natureza jurídica do Incra, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Nesse aspecto, a regulamentação proposta pelas entidades buscava proporcionar, do ponto de vista institucional, mais eficiência, pois enseja a redução de custos de manutenção e dos impactos ambientais resultantes da presença em um espaço físico, e, para os servidores, um ambiente de trabalho mais produtivo, vez que minimizam também os seus custeios de deslocamento e alimentação, dar-lhes-ia mais qualidade de vida ao lhes permitir otimizar seu tempo e conformar seu trabalho com suas realidades pessoais, sem prejuízo do trabalho. Aqui, sim, a tecnologia tem muito a contribuir, com sistemas que permitam o estabelecimento de metas e a aferição de resultados, por exemplo, quer seja presencial ou não o trabalho, e não só o retrógrado controle de entrada e saída de um ambiente.
Com o advento da pandemia de Covid-19 em 2020 (ainda presente), a implantação de teletrabalho foi uma necessidade imposta pelos protocolos sanitários. Apesar da forma conturbada com que ocorreu, tem funcionado bem, dentro das limitações institucionais. Tivessem as entidades sido ouvidas e fosse já o teletrabalho uma realidade, talvez estivesse funcionando ainda melhor, pois já seria parte da cultura institucional; mas não foram. No ano passado, os apelos resultaram apenas na criação de um grupo de trabalho, com escopo mais restrito, para estudo de atividades que podem ser realizadas à distância no órgão. Ainda assim, o resultado por ele apresentado em estudo, que minutou normativos e opinou pela realização de um projeto piloto em uma das superintendências regionais do Incra, (também) nunca foi levado a termo (4).
Desde o primeiro expediente, as entidades destacaram que “pela legitimidade que têm, devem e querem participar como interessados na regulamentação da jornada de trabalho, bem como de eventuais grupos de trabalho que venham a discutir, no âmbito do Incra, este assunto ou quaisquer outros correlatos à gestão do ambiente de trabalho e, assim, evitar posteriores questionamentos sobre as irregularidades da futura regulamentação desses aspectos”. Apesar disso, este pedido, bem como os que o reiteraram em 2018 e 2019, foram ignorados. O que importa é, tão somente, implantar o chamado “ponto eletrônico”.
As entidades solicitaram reunião e foram recebidas em 13 de setembro na Coordenação-Geral de Gestão de Pessoas (DOH), mas foram poucos os resultados. Em meio ao mar de dúvidas que o anúncio trouxe, tanto para os jurisdicionados quanto também para os chefes, sem nenhuma cartilha, sem normativo interno, e com vários erros nos ambientes de teste, o Incra, hermético, insistia no início do funcionamento a 1º de outubro, apesar do apelo das entidades por melhor preparação. Prometeu um “Treinamento Tira-Dúvidas”, para o qual, porém, não concordou sequer em convidar as entidades, como se fosse anômalo ou ilegal uma organização pública tratar com um sindicato.
O evento, enfim, ocorreu em 29 de setembro, mas foi, no mínimo, constrangedor. Os anfitriões, da Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal do Ministério da Economia, estavam preparados para uma reunião com os gestores de RH do Incra, quando se depararam com mais de 800 pessoas conectadas, numa plataforma que não foi configurada para esse público – vários microfones abertos, com interrupções de toda ordem e a todo tempo, e sem uma apresentação de foco. “Era só para os RHs, mas o Incra abriu para todos os servidores e a gente não tá conseguindo apresentar o sistema de maneira nenhuma”, “depois vamos fazer por UPAG [unidade de pagamento], porque a gente não sabia que ia ser servidor”, foi o que se ouviu deles.
As dúvidas eram muitas, pois nem mesmo os chefes e as divisões operacionais estavam devidamente esclarecidos. Pareceu que até os representantes da DO também não, pois estavam dirimindo as próprias dúvidas. Eram muitos também os relatos de problemas de acesso, de autorização, de IPs etc. Às 12h, restavam mais de 20 inscritos para falar. Tudo que é novo, carrega muitas dúvidas numa fase de adaptação, mas não se pode dizer que este volume estava numa margem dentro do normal. Em face do episódio, mas sem admitir o fracasso, a DOH viu-se ‘obrigada’ a atender os apelos e prorrogar o prazo de implantação do sistema, o que fez apenas por apenas mais um mês. Nesse ínterim, porém, os prometidos treinamentos por UPAGs não ocorreram e a cartilha de perguntas e respostas só saiu no final do mês, às vésperas do início da implantação, o que não mudou significativamente o quadro de desinformação que se configurava.
De modo que ainda são muitas as questões que circundam – e dificultam, se não inviabilizam – essa implantação deficitária. A principal é a ausência de um pensamento de gestão para além da implementação seca de um sistema de controle eletrônico de frequência. Nesses anos todos, o ímpeto de manter o servidor na ‘rédea curta’ não caminhou junto com o estabelecimento de modelos de trabalhos mais modernos e produtivos. O órgão mantém-se à sombra da alegação de que o primeiro é uma obrigação, ao passo que o segundo é uma faculdade, quando são temas absolutamente interligados e que deveriam ter caminhado pari passu para uma transição mais amigável e conformação de realidades. Esse tratamento soa desrespeito para com as categorias, preterindo do diálogo as entidades e até mesmo violando o direito à negociação coletiva.
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), ao qual o Incra é vinculado, editou recente normativo (5) para a implementação do Programa de Gestão, que inclui essas possibilidades. A portaria autoriza a extensão ao Incra, mas o órgão não a replicou até então, ao passo em que mantém a implementação do chamado Sistema de Registro Eletrônico de Frequência (Sisref) para este 1º de novembro, ainda no curso da pandemia, e também quando o governo federal busca reduzir custos de energia elétrica nos órgãos em razão da crise hídrica e energética (6), comprovando o desinteresse em tratar das questões conjuntamente, o que se considera um erro. Nesse contexto, faz parecer ser este este um instrumento de açodamento do retorno ao trabalho presencial, somado à recente portaria interna sobre esse retorno; ela foi editada no lastro das recentes disposições dos ministérios da Economia e da Agricultura (7), mas há uma diferença: lá, já é realidade o programa de gestão de trabalho que aqui se busca discutir há quatro anos, sem sucesso.
Outro ponto crucial é que isso está se dando numa lacuna de normatização interna, sem considerar as peculiaridades das atividades e das regionais, apenas ao abrigo de uma instrução generalista do Ministério da Economia, que conhece muito pouco de Incra (e que nem poderia dispor sobre tais especificidades). Exemplo: disseram que o horário de login seria das 7h às 20h, mas isso não está em normativo nenhum. Praticamente tudo estará sob a gestão dos chefes, que, além de desinformados e sobrecarregados de atribuições, terão uma grande concentração de poder sobre o servidor, gerindo-lhe horário de trabalho, regime, banco de horas etc. Esse quadro preocupa pela ameaça à isonomia no tratamento de jurisdicionados e pelo estabelecimento de ambiente propício a perseguições pessoais tendo como plano de fundo a folha de ponto. É preciso estabelecer balizas mínimas.
Face à teimosia – senão arrogância – do órgão, não restando outra alternativa, o SindPFA recorreu ao Judiciário e espera que, na falta de sensibilidade institucional, este venha em socorro para levar seus representantes a sentar à mesa e negociar, no mínimo, dando resposta ao pleito requerido há anos, antes de impor este sistema. Cumpre reiterar que as entidades sempre estiveram com as mãos estendidas para esta discussão. E, na verdade, elas têm esse direito. Por que negá-lo? Seja qual for a decisão, fica o registro da contrariedade com o quadro geral ora posto. E um alerta: esta representação está atenta e continuará a fazer a defesa profissional de seus associados para fazer frente a eventuais conturbações nas relações de trabalho; não se tolerará episódios de assédio.
Por todo o exposto, seria minimamente razoável reconsiderar a implantação do sistema nesse contexto negativo, até sanadas essas questões. Mantida a implementação, nos termos pretendidos, o resultado será uma transição conturbada, muitas interpelações e processos, queda de produtividade, deterioração da qualidade de vida nos ambientes de trabalho e até mesmo o apressamento de aposentadorias (o que já se vê acontecer no Diário Oficial) em um quadro já deveras minguado. O trato dessa questão exige, para além de entender de gestão – e mesmo aqui cabem muitos questionamentos; estressar o quadro de pessoal e levar à sua redução com aposentadorias precipitadas não parece nada estratégico; isso se o objetivo for a continuidade do órgão, claro -, é preciso também entender de pessoas, ou, no mínimo, se importar com elas. Não é o que parece estar acontecendo.