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Uma múmia aproxima-se de um recém-nascido: o SindPFA. O novo sindicato do Setor Público nasce numa família centenária de hábitos anacrônicos e irritáveis com a ideia de rever costumes e valores. Circunstâncias surgirão para o recém-nascido – com Governo, federações e confederações – que lhe cobrarão o enquadrar-se nas tradições ancestrais. Conseguirá o SindPFA escapar à senilidade avançada que paralisa o sindicalismo? Ressaltamos aqui alguns aspectos nocivos da prática sindical no Executivo Federal, e sugerimos algumas alternativas, na esperança de o SindPFA não se tornar decrépito ainda jovem.
O sindicalismo nasceu como atividade de vanguarda, com fins e meios renovadores em sua época. No começo do século XIX, a expansão napoleônica instalou a democracia pela primeira vez na Europa Continental, extinguindo feudos e permitindo que as terras fossem loteadas e vendidas. Começou também a industrialização e a urbanização. As guildas (associações de artesãos) foram abolidas, e nasceram os primeiros sindicatos de operários. Pouco antes, Karl Marx e Friederich Engels publicaram seu Manifesto do Partido Comunista (1848), denunciando a miséria da vida proletária, propondo soluções chamadas de comunismo científico. O sindicalismo só adotou amplamente as idéias comunistas e socialistas de O Capital por volta dos anos 1870s. O anarcossindicalismo (vertente defensora da substituição do Estado e dos patrões pelos sindicatos) surgiu naquele período, exatamente onde Marx dizia ser impossível a revolução: as regiões agrícolas miseráveis da Espanha, Rússia e sul da Itália. Mas o XIX e a primeira metade do XX foram atravessados pelos operários sem verem suas reivindicações atendidas, exceto na Inglaterra, o país mais rico e industrializado. Após a Segunda Guerra (1939-45), a teoria econômica keynesiana ganhou força e surgiu o Estado de bem-estar social, que implementou várias reivindicações trabalhistas e previdenciárias. O sindicalismo no Setor Público surgiu mais tarde, pejorativamente chamado de sindicalismo do colarinho branco. No Brasil, surgiu com o afrouxamento da Ditadura Militar (1964-1985). Desde seu surgimento em meados do XIX na Europa, o sindicato mantém quase a mesma estrutura e funcionamento até hoje.
O Estado liberal moderno e a iniciativa privada, ao contrário, não param de se transformar, evoluindo em simbiose desde as primeiras companhias de comércio do século XVI. Ocorreram crises econômicas, guerras, revoluções, avanços e retrocessos nas democracias, e o casamento Estado-empresa nunca parou de evoluir. Em fins do século XIX, a química, a eletricidade e o petróleo passaram a ser pesquisados cientificamente, e logo a empresa privada investiu na pesquisa. Na administração, a empresa passou a ter departamentos cada vez mais especializados, com equipes técnicas selecionadas por capacidade. E captou recursos através de sócios, acionistas, clientes, subsídios do Estado e especulação no mercado financeiro.
A abordagem empresarial da política nasceu realista, pois as primeiras companhias de comércio eram da própria nobreza política. Quando se estabeleceu a democracia, primeiro na Inglaterra e depois no continente, os acionistas eram os próprios parlamentares. Mas empresas também surgiram fora do Estado, e muitas logo reconheceram ser essencial influenciar políticos e, se possível, elegê-los e controlá-los. A publicidade se tornou vital para o político e para o empresário, pois sem a opinião pública a seu favor, nem um nem outro prosperavam na democracia. As técnicas de publicidade se sofisticaram e se aprofundaram cada vez mais, como instrumento essencial de informação e manipulação da população.
Nos séculos XX e XXI, as crises econômicas e guerras continuaram (I e II Guerras, Grande Depressão dos 1930s, Guerra Fria, Ditaduras na América Latina, I e II Choques do Petróleo, Década Perdida, Crise do México, Crise da Ásia, Crise da Rússia, Crise das Empresas Ponto Com, Crise do Subprime) e empresários e governantes se entenderam para superar as adversidades. Bem ao contrário da profecia de Lênin de que o capitalismo iria se autodestruir em breve, ele foi se adaptando às crises cada vez mais frequentes, enquanto o socialismo de Estado se destruiu. Essas fases críticas geraram teorias sofisticadas de economistas, cientistas políticos, prêmios Nobel e outros laureados em contínuo renovar de idéias, modelos, paradigmas e experiências, até chegar na atual Globalização econômica, Pós-Modernidade cultural e Multipolaridade política internacional.
Nos países do bloco socialista e no mundo sindical, as coisas estiveram longe dessa evolução rica e dinâmica. O sindicalismo chegou ao século XX praticamente do mesmo jeito, como múltiplas associações de operários com duas funções: negociar com o patrão e criar um fundo para ajudar os sócios na doença e no desemprego. Foi Getúlio Vargas quem fez uma grande mudança, normatizando pela CLT o formato do sindicato e passando as funções de auxílio ao empregado para a Previdência Social estatal e única. Verificando-se a CLT e as leis, decretos e súmulas que aprofundaram o funcionamento sindical, é fácil perceber que o sindicato parece um órgão público da década de 1930 destinado a conversar com o governo de forma domesticada. Até a remuneração dos diretores e a contribuição sindical são determinadas.
Essa estrutura permitiu ao tímido sindicalismo se expandir quando o país começava a se industrializar, na década de 1930. Mas a estrutura que ofereceu abrigo não acompanhou as mudanças, convertendo-se numa tumba asfixiante de rocha. Nessa mesma época cresceram no Brasil os simpatizantes do socialismo, comunismo e anarcossindicalismo. É quando os partidos comunistas (PCs) entram no movimento sindical, aos quais chamamos aqui de esquerda sindical. As ideias dos primeiros anarquistas e anarcossindicalistas, como Malatesta, Bakunin, Proudhon, Lassale e outros do século XIX e começo do XX, passaram a compor o livro sagrado da esquerda sindical no mundo todo.
Desde então, teve início o processo de mumificação. Qualquer método, valor ou idéia que esses ativistas vejam como de origem “inimiga” (qualquer símbolo dito norte-americano ou capitalista, mesmo que não seja) é demonizado no melhor estilo pentecostal. Fundamentalistas religiosos e políticos se assemelham em muitas coisas, inclusive na maior importância dada aos símbolos do que aos fatos. Nem o vocabulário sindical se renova há 150 anos, sob a infantil alegação de que as idéias originais da esquerda europeia do século XIX eram tão perfeitas que nem precisam ser revistas. Esse quadro se verifica aqui e em vários países da Europa e das Américas, seja onde a esquerda sempre foi forte, como a França, seja onde sempre foi fraca, como nos EUA e no Reino Unido); em todos os lugares a falta de renovação das idéias, métodos, objetivos e ações exala um cheiro de mofo e naftalina que seduz cada vez menos.
Hoje, 80 anos depois do surgimento da esquerda sindical no Brasil, quem apresentar-lhe uma proposta não-tradicional – por exemplo, contratar um escritório de lobby profissional para usar as reais regras do jogo político – passará por um exorcismo. Tal como as igrejas pentecostais, ela prega a chegada do Paraíso, não com a segunda vinda de Jesus, e sim com a segunda vinda do socialismo. O sindicalismo dos trabalhadores do setor público e as reformas neoliberais de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), tese de doutorado de 2006 de Silvana Soares de Assis, pela UNICAMP, disponível nesse link, ilustra bem essa estagnação. A abordagem da autora tem sabor atemporal, pois é típica do sindicalista contemporâneo e do novecentista. A pesquisadora mostra como sindicatos do Rio de Janeiro e São Paulo (SINTRASEF-RJ, SINSPREV-SP e SINDSEF-SP) e as confederações CUT e CNASI enfrentaram as reformas administrativa e previdenciária da era FHC. Ela declara sua vertente marxista, é pródiga em citações de Lênin, Marx, Poulantzas e outros profetizando o fim do capitalismo, e explica os problemas econômicos e sociais atuais com modelos teóricos do século XIX. Sua análise reduz o insucesso da ação sindical a uma causa maior, da qual as outras derivam: o sistema capitalista não permite a unidade de interesses dos servidores. E “conclui” que a unidade seria possível se o país estivesse numa revolução socialista.
Longe de ser original, realista, imparcial e aplicável, a pré-definida conclusão de Assis tem sido reeditada há quase 200 anos. E, contudo, não menciona importantes e intocáveis dogmas do sindicalismo:
a) a estrutura do sistema sindical base-diretoria-delegação-federação-confederação não muda há mais de um século e não precisa mudar;
b) a diretoria deve mesmo ser formada só por voluntários (não remunerados);
c) a diretoria não precisa ser ou ter especialistas em gestão, gerência, administração, propaganda ou Direito Administrativo. Especializações são desnecessárias à atividade sindical, que se resume às reuniões de trabalho (congressos, encontros etc.) e a protestar pelas formas tradicionais;
d) a enorme variedade de cargos, posições sociais e qualificações profissionais dos sindicalizados é irrelevante; a força está na união homogênea da massa em grandes greves e passeatas;
e) a negociação com o Governo de “pautas específicas” de classes e grupos deve ser desincentivada;
f) o crescente individualismo do mundo contemporâneo é heresia capitalista imperdoável e a causa de o servidor se desinteressar pelas ações sindicais;
g) os métodos de pressionar o governo devem ser os tradicionais: greve, panfletagem e passeata. Outros podem ser subsidiários desses.
Avançando na metáfora, esse dogmatismo temperado com romantismo, utopia e irrealidade forma um sarcófago dentro da já abafada tumba que a Lei construiu para os sindicatos.
O trabalho arqueológico finalmente nos revela de quem é o cadáver enfaixado, a múmia. Essa entrega sua identidade oculta pelas faixas quando conta coisas de quando era viva. A múmia revela que sua inspiração é a trajetória do PT. À época da ditadura militar, o então recém-fundado partido uniu-se às demais forças da oposição. Restaurada a normalidade democrática em 1988, as forças se separaram. O PT, além dos sindicatos, começou a entrar nas prefeituras pequenas, depois nas maiores e, enfim, chegou ao Governo Federal 15 anos depois. E então deixou os sindicatos. Conta ainda o ser enfaixado que os PCs haviam feito às vésperas de 2003 uma escolha: ou aliavam-se ao PT para obter cargos no Executivo, ou ocupavam o vácuo sindical deixado por ele. Os que optaram pelos sindicatos querem seguir a mesma trajetória do PT rumo à rampa do Planalto. Nas eleições sindicais, os PCs candidatam-se à diretoria. Nas eleições para cargos públicos, os PCs apresentam candidatos a prefeito, vereador e deputado estadual. Então o pensamento não dito, não escrito e inconfessável da múmia acaba escapando num sussurro cavernoso:
– Eu, um PC, não abro mão dos sindicatos; a direita não tomará meu único reduto. O sindicalismo só atenderá ao interesse do sindicalizado se atender também ao meu projeto político.
E enquanto nenhum Indiana Jones aparece para mudar a situação, as assembléias do Setor Público vão se esvaziando, restando nelas só os próprios militantes e entusiastas da esquerda sindical. São visíveis a desconfiança do servidor com o discurso ideológico e a aversão às histórias de conflitos entre CUT, CONLUTAS, CGT e CNASI.
Para se verificar como essa forma de sindicalismo está defasada, compare-se outros movimentos dirigidos ao Estado e ao governo, como o ambientalismo, a defesa de minorias, de direitos humanos etc. Essas iniciativas, organizadas mais livremente por ONGs e outros entes privados, conseguem aprovar mais leis, decretos, programas, projetos e outros atos oficiais do que qualquer sindicato no Brasil já conseguiu. No entanto, a múmia se recusa a aprender com essas experiências bem-sucedidas, falando de como era sua vida um século e meio antes.
Assim como a profecia de Lênin do fim do capitalismo e sucesso do socialismo saiu invertida, surge-nos a dúvida se a esquerda fundamentalista não condenará o sindicalismo ao colapso ou à mumificação. Para muitos analistas e sindicalizados, o processo de mumificação já ocorre há vários anos.
Tentamos nos parágrafos anteriores comparar sumarissimamente a evolução rica e dinâmica do Estado liberal e da empresa privada com o ritmo estacionário do sindicalismo, e também ressaltar algumas incongruências desse movimento mais ideológico que pragmático. E o que advogamos é a adoção pelo nascente SindPFA de uma variedade de táticas e estratégias muito além da greve, da panfletagem e das passeatas. Essas são ferramentas úteis, especialmente a greve em momentos críticos, mas há muitas outras ações já comprovadamente eficazes, podem ser adicionadas ao rol das táticas e estratégias já usadas pela Assinagro. Algumas delas são:
a) publicidade – contratar uma equipe de marketing que faça um plano publicitário visando informar a opinião pública que: 1) a Governança Fundiária é peça-chave na economia rural nacional; 2) os PFAs são os profissionais especialistas nessa área por excelência; 3) o serviço público precisa ser modernizado para a Governança funcionar bem; 4) Reforma Agrária e Agronegócio não são incompatíveis, não são inimigos e o mundo rural não está dividido em anjos e demônios, são ambas modalidades de negócio necessárias à economia nacional;
b) lobby – contratar um escritório de lobby profissional no Congresso. Em princípio, a meta pode ser apenas o apoio momentâneo à melhoria salarial da carreira, mas no longo prazo a meta deve ser uma bancada suprapartidária aliada no Congresso em defesa da Governança;
c) apartidarismo – não aceitar na formação de chapas para a diretoria um número de candidatos filiados a partidos políticos superior a 10 ou 15%;
d) independência – unir-se a federações, confederações e centrais apenas circunstancialmente, isto é num momento específico cuja união poderá ser vantajosa, sem compromisso vinculante posterior;
e) pragmatismo – agir ou não agir sempre por razões táticas e realistas, e nunca por alinhamento ideológico automático de qualquer tipo a não ser, naturalmente, pela Governança Fundiária e pelo progresso da Carreira;
f) relevância social – adotar a bandeira de algum movimento social legítimo e já estruturado no qual os PFAs possam ter grande importância (por exemplo, fim da escravidão no meio rural). Esse movimento deve ser amplamente conhecido pelas classes urbanas e estar acima de polêmicas. O fim da escravidão, por exemplo, não é polêmico. A Reforma Agrária é;
g) respeitabilidade técnica – criar uma publicação eletrônica, com conselho editorial, que publique dados que só os PFAs tenham facilidade de processar e reunir, e que sejam relevantes para analistas, jornalistas, políticos, cientistas políticos e acadêmicos. Aproveitando a atenção trazida para o site, os PFAs devem publicar artigos técnicos ou dissertativos que veiculem idéias, análises e dados que orientem o público na construção da imagem que o plano publicitário projetou. Também deve a publicação expressar o andamento das ações e dados obtidos pelo projeto de relevância social do item anterior;
h) realidade virtual – tornar a distância enorme entre as superintendências e a Sede o menos limitante possível através da informatização do maior número possível de ações. O conselho editorial do site, por exemplo, pode estar disperso pelo país e fazer teleconferências para apreciar artigos a publicar. Há aplicativos de teleconferência gratuitos para os sistemas operacionais de tablets e celulares bem mais práticos que o sistema por tela grande.
A Assinagro, felizmente, nunca abrigou a tradição ideológica dogmática que existe no movimento sindical. As tentativas que observamos de ideologizar a Associação não tiveram ressonância entre os engenheiros agrônomos. Esses preferem uma abordagem pragmática dos desafios. Ao nosso ver, nisso tem residido os sucessos que os Peritos Federais Agrários têm conseguido até agora nas negociações com os Governos.
É exatamente assim que deve continuar.