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INTRODUÇÃO
Com o tema “Ecologia de Saberes: Ciência, Cultura e Arte na Democratização dos Sistemas Agroalimentares”, o XI Congresso Brasileiro de Agroecologia (XI CBA) aconteceu na Universidade Federal de Sergipe, em Aracaju, entre os dias 04 e 07 de novembro de 2019. Em meio à crise ambiental que se instalou no país e às inúmeras ações governamentais que vão na contramão da produção sustentável de alimentos, da preservação dos saberes e das comunidades tradicionais, da segurança alimentar, da conservação da água e da democratização da terra, o evento trouxe amplas discussões que culminaram na necessidade urgente de re-significar a ciência, o modo de fazer agricultura e de tratar a natureza.
Neste Congresso, a construção do conhecimento agroecológico foi pautada no diálogo de saberes acadêmico e popular e realizado em diversos espaços coletivos: rodas de conversa, oficinas autogestionadas, festival de cinema agroecológico, apresentação de trabalhos, feira da agrobiodiversidade, troca de sementes, cozinha das tradições, mostras culturais, tenda da cura, ciranda infantil, lançamento de livros, ambientes de diálogo dos grupos identitários, terreiro das inovações camponesas e conferências.
O evento abrangeu 16 eixos temáticos, que culminaram em dez Conferências Conjuntas e que por sua vez, teceram a Conferência de despedida. Desta última, gerou-se uma carta construída coletivamente, que critica o modelo produtivista e a uniformização da agricultura e dos alimentos, ao mesmo tempo em que defende uma ciência crítica, orientada pelas pesquisas científicas e pelos saberes dos povos e embasada na produção de conhecimentos que promovam um novo formato de sociedade e da sua relação com o ambiente, com os alimentos, com as diferenças e com a economia, sempre no sentido de reproduzir a vida no seu conceito mais amplo e democrático.
Pretende-se com este artigo, apresentar em linhas gerais as principais discussões que este Congresso trouxe tanto para o meio acadêmico como para os profissionais das mais diversas áreas, comunidades tradicionais, quilombolas, agricultores familiares e assentados da Reforma Agrária. Também propõe-se demonstrar a importância deste evento para a categoria dos Peritos Federais Agrários do INCRA, como um convite à reflexão da nossa atuação enquanto agrônomos diante de um quadro de tanta instabilidade política, econômica, ambiental, agrária e social.
DESENVOLVIMENTO
O lema central do Congresso foi a Ecologia de Saberes, que busca reconhecer o mesmo nível de importância entre os saberes tradicionais (passados para outras gerações através da cultura, arte, oralidade e práticas) e os conhecimentos gerados nas universidades, escolas e centros de pesquisa, fazendo com que ambos dialoguem, se alimentem mutuamente e sigam juntos em direção à defesa da democratização dos sistemas agroalimentares.
A metodologia que inspirou a programação do XI CBA tem como base as proposições da Pedagogia do Território (RIGOTTO & ROCHA, 2014) e da Pedagogia Griô (PACHECO, 2006). A primeira trata de destacar a importância dos diferentes atores inseridos em um contexto de injustiças ambientais, com visões e saberes peculiares em seus territórios, mas que, apesar de tão diferentes do mundo acadêmico, contribuem sobremaneira para a produção de conhecimentos mais integrativos, mais próximos das realidades territoriais, mais justos e solidários. A segunda busca construir o conhecimento a partir do acúmulo da cultura da tradição oral, como a camponesa por exemplo que, através de sua oralidade e vivência prática, transmite o conhecimento de geração em geração e garante a celebração do direito à vida, a ancestralidade e a identidade do seu povo.
A partir dessas abordagens, a programação foi organizada no formato de teia, onde alunos voluntários de variados cursos da Universidade Federal de Sergipe estiveram presentes em todos os espaços de diálogo durante os dias do evento e sistematizaram as questões geradoras em torno do tema do Congresso, por meio de diferentes linguagens artísticas construídas no espaço “Teia das Fiandeiras”.
Iniciou-se pela Conferência de Abertura (Foto 01), acolhendo todos os participantes e conferencistas para o objetivo central do Congresso. Os 16 eixos temáticos e a sistematização das questões geradoras foram abordados nos ambientes chamados “Diálogo de Saberes” e depois integrados em dez Conferências Conjuntas, que agregaram o conhecimento dos diferentes eixos e teceram a Conferência de Despedida, com a apresentação da “Carta do Nordeste”, a qual aponta caminhos para o fortalecimento da Agroecologia e a promoção da soberania alimentar, baseada em estratégias coletivas, tendo a Ecologia dos saberes como norteador para a construção da autonomia dos diversos sujeitos e formas de existência.
Foto 01. Conferência de Abertura
Os mais de 2 mil trabalhos científicos, relatórios técnicos e populares foram compartilhados no ambiente “Tapiris de Saberes”. Os ambientes permanentes: “Feira dos Saberes e Sabores”, “Terreiro das Inovações Camponesas”, “Cozinha das Tradições”, “Ciranda Infantil”, “Acampamento e Tenda da Cura” promoveram eventos ricos em cultura, culinária, conhecimento, troca de saberes e atividades lúdicas com as crianças.
Houve ainda os “Ambientes de Interação Agroecológica”, com as oficinas autogestionadas, vivências, rodas de conversa, intervenções artístico- culturais, instalações artístico-pedagógicas, lançamento de livros e exposições, Festival Internacional de Cinema Agroecológico, Festival Sergipe Cultura e agroecologia, Tendas e a Casa dos NEA`s (Núcleos de Estudos em Agroecologia). Os “Ambientes identitários” trataram de plenárias das mulheres, de juventudes, Assembleia da ABA-Agroecologia, Plenária de Agricultoras e Agricultores Experimentadores, reuniões e outros. O fluxo dessa teia está demonstrado na Figura 01, seguida da legenda na Figura 02.
Como o evento foi muito extenso, destacamos alguns momentos importantes, onde foi possível acompanhar com mais profundidade as discussões, encaminhamentos e objetivos, que ao final, também compuseram a Conferência de Despedida e a “Carta do Nordeste”.
Figura 01. Configuração do XI CBA
Figura 02. Legenda da configuração do XI CBA.
Festival Internacional de Cinema Agroecológico
Apontamos aqui um olhar especial ao Festival Internacional de Cinema Agroecológico (FICAECO), que exibiu 35 filmes e abriu espaços para apresentações artísticas de grupos e povos indígenas. Os filmes tiveram várias temáticas, dentre elas, os impactos dos agrotóxicos na saúde de trabalhadores rurais; as produções e as feiras agroecológicas; as vivências, realidade e experiências dos povos indígenas; as questões de gênero, com destaque à importância da mulher no desenvolvimento de sistemas sustentáveis de produção alimentar; a crítica ao agronegócio, entre outros.
Uma das mostras especiais de abertura do evento foi o documentário “Diagnóstico” (2018), de Beto Novaes, que retrata o depoimento de uma agricultora que trabalhou durante vários anos com a cultura do tabaco e atualmente se encontra em cadeira de rodas e muito debilitada. É um filme que provoca muitas reflexões quanto ao uso “seguro” dos agrotóxicos, já que seus componentes não saem do sistema e sim, só mudam de lugar: da embalagem às lavouras, ao EPI, à pele do(a) agricultor(a), à água, ao solo, ao ar. Uma vez aplicado no ambiente, não há como se livrar de suas moléculas, provocando danos irreversíveis por onde “passa”. E quanto menos recursos tecnológicos, financeiros e intelectuais o agricultor possui, maiores são os riscos de contaminação, com grande potencial de provocar doenças crônicas e até morte.
O segundo documentário de grande impacto e que revela de forma muito objetiva os efeitos danosos dos agrotóxicos na vida das pessoas em regiões agrícolas da Argentina foi o “El costo humano de los agrotóxicos” (2014), produzido e dirigido por Pablo Ernesto Piovano.
Vale ressaltar que o principal objetivo deste Festival foi dar a oportunidade para as pessoas (indígenas, agricultores, quilombolas, integrantes de movimentos sociais, trabalhadores rurais) contarem suas próprias histórias através do cinema, utilizando esse recurso como instrumento de luta pelos seus direitos. Cada sessão foi acompanhada de ricos debates ao final, entre o público, documentaristas, cineastas, pesquisadores, artistas, Ministério Público, profissionais da saúde e integrantes da ABA (Associação Brasileira de Agroecologia), como mostrado na Foto 02.
Foto 02. Debate ao final de uma das sessões do FICAECO
Tenda Rachel Carson
Um dos Ambientes Permanentes do Congresso tratou especificamente sobre os Agrotóxicos e Transgênicos: a Tenda “Rachel Carson”, cujo nome foi dado em homenagem a uma importante cientista americana da área ambiental e que lançou um dos livros mais polêmicos e criticados pela indústria química mundial, chamado “Primavera Silenciosa” (1962), o qual levou os EUA a banirem o uso do DDT e outros pesticidas da época.
A Tenda “Rachel Carson” foi palco de ricas discussões sobre os impactos socioambientais dos agrotóxicos e dos transgênicos e as estratégias para combater as contaminações dos alimentos, das sementes crioulas e das pessoas através de ações coletivas, políticas públicas, pesquisas, comunicação visual, publicações de livros e envolvimento de toda a sociedade.
Alguns exemplos de combate ao modelo danoso de produção de alimentos foram demonstrados na roda de conversa “Políticas Públicas, Estratégias Jurídicas e Ações Coletivas contra os Agrotóxicos e na Construção da Agroecologia” (Foto 03), onde alguns gestores municipais apresentaram o que tem sido feito para promover a produção mais saudável de alimentos, através de leis específicas que incentivam a produção orgânica no campo e na cidade; que dificultam a pulverização aérea; que estimulam a ocupação de terenos baldios para implantação de hortas; que criam formas de levar conhecimento aos adultos e crianças através de cartilhas didáticas; e que proíbem o uso de agrotóxicos próximo a comunidades ou no município inteiro (como Florianópolis, por exemplo, através da Lei Nº 10.628, de 8/10/2019, que institui e define Zona Livre de Agrotóxicos a produção agrícola, pecuária, extrativista e práticas de manejo de recursos naturais no município).
Foto 03. Fala de Rogério Dias (MAPA) na Tenda Rachel Carson
Neste mesmo espaço, os agricultores do Movimento Camponês Popular denunciaram a contaminação transgênica das sementes crioulas produzidas nas pequenas propriedades familiares e a dificuldade de “proteger” os espaços daqueles que querem produzir diferente do sistema convencional, já que não há nenhum zoneamento delineado para tal finalidade.
Houve também lançamentos de livros com temáticas importantes para o enfrentamento a tudo o que está imposto à sociedade, no campo da agricultura, política, ciência, justiça e ambiente; e o Seminário dos Fóruns Regionais de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, cujos representantes de diversos Estados compartilharam as ações desenvolvidas em seus locais de origem.
Por fim, os representantes da sociedade civil; das instituições públicas; do campo político; dos movimentos sociais; dos profissionais da comunicação, da saúde, do direito, da educação e da agronomia; o público em geral, entre outros, estiveram presentes nesta Tenda durante os quatro dias de Congresso para demonstrarem suas preocupações com o rumo do país, ao mesmo tempo em que apresentaram algumas propostas para a redução do uso de agrotóxicos no campo, especialmente através de um trabalho coletivo de toda a sociedade, no sentido de transformar a produção de alimentos em um ato justo e que se sobreponha a qualquer interesse individual, irracional e puramente mercantilista. Além disso, a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA), proposta pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) em forma de Projeto de Lei (PL 6670/2016), abrange muito do que foi discutido e abordado no evento em questão.
Ambientes de Interação Agroecológica
Este Congresso também trouxe – através de rodas de conversa (Foto 04) e apresentações de trabalho – as ações de inovação tecnológica sendo aplicadas em diversos locais do país, com o objetivo principal de promover a ponte entre o mercado consumidor e a agricultura familiar. Alguns softwares, aplicativos e sites estão sendo desenvolvidos por universidades, empresas sociais, cooperativas e voluntários para aumentar a renda das famílias agricultoras e levá-las a um nível melhor de organização, tanto social como econômica, administrativa e de escala de produção.
Foto 04. Roda de Conversa mediada pela Cooperativa EITA (Cooperativa de Trabalho Educação, Informação e Tecnologia para Autogestão)
Outro assunto apresentado no Congresso foi a utilização de ferramentas de Gestão Territorial, através de programas que monitoram o desmatamento, queimadas e incêndios florestais em uma larga linha do tempo ou em tempo praticamente real. São ferramentas interessantes do ponto de vista da governança agrária – atualmente defendida pelo Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários (SindPFA) como forma de promover o ordenamento da estrutura fundiária brasileira – pois oferecem dados com alto grau de precisão que permitem fiscalizar o uso da terra; identificar áreas de conflito agrário; definir estratégias para manejar os agroecossistemas de forma racional e inclusiva; identificar os locais onde ocorre maior pressão de desmatamento e as suas principais motivações; formular políticas públicas de combate à grilagem de terras e ao desmatamento ilegal, entre outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O formato deste Congresso nos leva a refletir sobre a importância de se fazer Ciência respeitando e incluindo todos os sujeitos historicamente colocados à margem de suas próprias histórias. O diálogo entre a academia e os saberes tradicionais é condição sine qua non para que se construa uma ciência crítica, orientada pela justiça social, que considera tão importante os dados gerados por um laboratório de pesquisa como as práticas cotidianas dos povos do campo, das águas, das florestas e das cidades.
Nesta perspectiva, a Agroecologia, que se define como Ciência, Movimento e Prática, reconhece e valoriza os conhecimentos populares e científicos, ao mesmo tempo em que busca construir sistemas agroalimentares mais éticos do ponto de vista econômico, social, político e ambiental.
É mais do que urgente compreendermos que a produção de alimentos não se resume simplesmente em produzir commodities ou “mercadorias comestíveis” e que também não pode estar submetida às indústrias de sementes e agroquímicos, as quais decidem o que se deve plantar e como. O modelo produtivista uniformiza a agricultura e os alimentos e portanto exclui a diversidade, a peculiaridade dos territórios e principalmente todo o conhecimento gerado por séculos pelos sujeitos do campo e da floresta.
Ainda, a prática da Agroecologia está intimamente relacionada com a questão fundiária do país e aí está a importância de uma política massiva e integral de desconcentração de terras, ou seja, de uma verdadeira reforma agrária que estimule novas economias e mercados e esteja pautada em sistemas agroalimentares diversificados, considerando as peculiaridades e as necessidades de cada território.
Enquanto categoria de Peritos Federais Agrários, defendemos a regulação do uso da terra e da propriedade rural como ferramentas essenciais da governança agrária, de modo a garantir o uso adequado e racional do solo, da água e da biodiversidade. Contudo, há que se ter a compreensão de que a Agroecologia é uma das chaves que atesta justamente o que defendemos acima. Quando os sistemas agroalimentares garantem a segurança e a soberania alimentar de um país, necessariamente a conservação do solo, da água e da biodiversidade já são praticados.
Portanto, defender a Agroecologia é defender a Reforma Agrária; a troca de conhecimentos acadêmicos-científicos-populares; a redução da desigualdade social; a educação crítica e construtiva; o cumprimento integral da função social da propriedade e uma governança agrária que vise integrar e gerir não somente os aspectos fundiários do nosso território brasileiro, como também os sistemas de produção de alimentos que levam à sustentabilidade e à reprodução da vida.
“É uma questão de ética e de dignidade humana se alimentar bem.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(Autor desconhecido) Brasília. Projeto de Lei 6670/2016. Institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos – PNARA. Brasília, 2016. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=654C9D47761E785C4DA8D4C12C4
921AE.proposicoesWebExterno2?codteor=1516582&filename=PL+6670/2016 . Acesso em 08/12/2019.
EL COSTO humano de los agrotóxicos. Produção e Direção: Pablo Ernesto Piovano. 11 min. Argentina, 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=21&v=J63mUu6Gu6Y&feature=emb_logo. Acesso em: 7 dez. 2019.
Florianópolis. Lei Nº 10.628, de 08 de Outubro de 2019. Institui e define Zona Livre de Agrotóxicos a produção agrícola, pecuária, extrativista e práticas de manejo de recursos naturais no município de Florianópolis. Florianópolis, 2019. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/lei-ordinaria/2019/1063/10628/lei-ordinaria-n-10628-2019-institui-e-define-como-zona-livre-de-agrotoxicos-a-producao-agricola-pecuaria-extrativista-e-as-praticas-de-manejo-dos- recursos-naturais-no– municipio-de-florianopolis. Acesso em 06/12/2019.
O DIAGNÓSTICO. Direção: Roberto Novaes. 45 min. 2018. Documentário. Link não disponível.
PACHECO, L.. Pedagogia Griô: a reinvenção da roda da vida. Lençóis, Grãos de Luz e Griô, Lençóis – BA. 2006. 176p.
RIGOTTO, R. M. & ROCHA, M. M. Da crítica à ciência moderna à construção de novas práxis acadêmicas: a Pedagogia do Território e a Ecologia de Saberes. In: Anais do Colóquio internacional Epistemologias do Sul: Aprendizagens globais Sul – Sul, Sul-Norte e Norte – Sul, 2014.