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Nas eleições de 2022, a partir da leitura dos documentos de programas ou diretrizes de governo protocolados pelas quatro principais candidaturas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) [1], constatamos que a chapa Lula-Alckmin foi a única a propor reforma agrária. Em sua posse [2] e em entrevistas [3], o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, tem reiterado que o governo tem compromisso com a política. O presidente do Incra, Cesar Aldrighi, em sua primeira entrevista após efetivado, afirmou o mesmo [4].
Como profissionais incumbidos de fazer a fiscalização da função social da propriedade rural e de levar a termo a reforma, e conscientes dos problemas fundiários e da desigualdade que teima em se perpetuar no meio rural brasileiro, louvamos o comprometimento governamental demonstrado nos documentos e nas falas, pois, se problemas como a concentração fundiária e a desigualdade no campo ainda são atuais, a reforma agrária, como solução e remédio constitucional próprio, também continua atual.
Mais que isso, queremos contribuir para que esse compromisso se traduza em realidade e tenha sucesso. Nesse sentido, nos últimos anos, o SindPFA promoveu fóruns específicos para esse debate, com seus filiados e com a sociedade, além de congressos, seminários, eventos virtuais e publicações. Por isso, desse amplo debate e de posições maduras sobre essa temática, extraímos e apresentamos abaixo algumas contribuições práticas para a agenda da reforma agrária neste mandato.
Restabelecimento inicial dos órgãos, gestão e orçamento
O governo inicia com muitos desafios nessa área, a começar pela recriação do MDA, extinto em 2016 como ministério e em 2019 como secretaria especial, com todas as obrigações e afazeres inerentes a essa reconstituição. Quando extinto, em 2016, contava apenas com cerca de cem servidores, hoje são menos que isso.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão executor da reforma agrária, não está diferente: estrutura diminuída e precarizada, sem reposição do quadro desde 2013 (fruto de concurso realizado em 2010), com cerca de metade dos servidores que tinha há dez anos, desvalorizados, atividades intencionalmente paralisadas e um orçamento extremamente restrito.
Para aquisição de terras para a reforma, por exemplo, o Incra dispõe de apenas R$ 2,4 mi em 2023, valor insuficiente até mesmo para a desapropriação de 4 mil hectares da Suzano no Sul da Bahia, palco de recente ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que o MDA tenta mediar, e objeto de um acordo firmado em 2015 que, no entanto, demandaria cerca de R$ 50 mi.
Recomposição orçamentária
Nesse aspecto, uma alternativa talvez esteja na busca pelos recursos oriundos da Emenda Constitucional nº 126/2022, resultado da chamada PEC da transição —a qual apoiamos publicamente [5], justamente por diagnosticar essa dificuldade—, que abriu ao governo cerca de R$ 22,9 bi para novos investimentos sem ‘furar o teto’.
Defendemos também que MDA e Incra busquem junto à área econômico-orçamentária do governo a completa destinação ao seus orçamentos dos recursos provenientes das contribuições de intervenção no domínio econômico (Cides) de Reforma Agrária e Industrial Rural, que são tributos previstos em lei desde 1955 [6], destinados ao Incra desde sua criação, incidentes sobre a folha de salários das empresas urbanas e rurais, responsável por gerar até R$ 2 bilhões anualmente, mas que no último governo teve retirados 15% para o Ministério da Agricultura por meio do Decreto nº 10.371/2020 e foi até ameaçado de extinção pelo então ministro da Economia [7] — mas sobreviveu.
O recorte do percentual para o Mapa a partir de 2020 foi justificado pela transferência das atribuições de extensão rural, cooperativismo, associativismo e eletrificação rural do Incra ao Ministério da Agricultura que, no entanto, remonta a 1984 [8]. Ainda que se admita a manutenção desse destaque ao ente ministerial, deve ser destinado ao MDA, que hoje reúne tais atribuições, e não mais à pasta da Agricultura e Pecuária.
Além disso, há uma grande parcela da receita dessas duas contribuições não alocada para o Incra nem para o MDA. Na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2023, há uma receita de cerca de R$ 700 milhões proveniente delas que estão listados nos Recursos Livres da União, ou seja, sem vinculação a nenhum órgão, embora as Cides sejam tributos de natureza extrafiscal e de arrecadação vinculada.
Nessa esteira, bom lembrar que, em 2021, o STF reconheceu [9] a constitucionalidade e exigibilidade da Cide de Reforma Agrária destinada ao Incra, num julgamento em sede de repercussão geral. No voto vencedor, do ministro relator Dias Toffoli, considerou-se que “a contribuição tem natureza extrafiscal, pois tem por finalidade promover a reforma agrária, objetivando assegurar a função social da propriedade e diminuir as desigualdades regionais e sociais”. Portanto, não utilizá-la para essa finalidade contraria o entendimento da decisão da Suprema Corte pela sua legalidade.
Gestão e direção
A nosso ver, o governo acertou na escolha de César Aldrighi para a presidência do Incra, porque o funcionamento da autarquia é complexo no mesmo grau da complexidade da reforma agrária e do ordenamento fundiário brasileiro e, assim, a escolha por um servidor e técnico com experiência de direção na casa são fatores positivos a contribuir para uma boa gestão, além de fator determinante para o alcance de resultados num tempo menor. O mesmo se aplica, na sede e nas superintendências, à escolha de ocupantes para os cargos de direção e, especialmente, de coordenação-geral, onde efetivamente se operam as políticas.
No MDA, idem, especialmente na estrutura que mais se relaciona com o Incra, qual seja a Secretaria de Governança Fundiária, Desenvolvimento Territorial e Socioambiental. Em todos os casos, o SindPFA respeita as indicações políticas, que são próprias de qualquer governo, busca construir uma relação de confiança e de respeito da gestão para com os servidores públicos, para com as suas representações e, especialmente, para com o trabalho técnico da categoria, especialmente à medida em que estes também contribuem para a execução das políticas.
Reestruturação do Incra
A demora nas nomeações comprometeu, de certa forma, a busca por resultados no curto prazo na área de reforma agrária, especialmente para os primeiros 100 dias de governo. Por isso, um ato relevante para o período seria a reestruturação do órgão executor dessa política, uma vez que suas áreas finalísticas foram atrofiadas nos últimos anos e ele terá muitas dificuldades de atender o que o governo espera com a atual estrutura.
Na atual estrutura, herdada do governo anterior, há um diretor sem uma diretoria e sem atribuições definidas no Regimento Interno (Diretor de Programas); a Diretoria de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento foi fundida com a então Diretoria de Obtenção de Terras, sendo reduzidas em um terço, e esta última reduzida a uma divisão; a Diretoria de Governança Fundiária recebeu a atribuição de regularização na Amazônia, que era da antiga Secretaria Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia Legal (Serfal), mas sem receber nenhum cargo proveniente dela; entre outros problemas. Nas superintendências regionais, o caos provocado pela drástica redução da estrutura do órgão é ainda maior.
Defendemos a reestruturação do Incra ao menos ao tamanho da estrutura que possuía em 2015, com: i) a recriação de mais uma diretoria finalística, para o reequilíbrio de forças necessário a uma autarquia, que hoje tem musculatura maior na área meio e de controle; ii) o restabelecimento de ao menos mais 107 cargos perdidos nos últimos anos, especialmente nas regionais; iii) o restabelecimento das câmaras técnicas regionais como órgãos consultivos da dinâmica dos trabalhos locais e a constituição de uma Câmara Técnica Nacional como órgão consultivo para a análise de normativos.
Quanto à distribuição de temas das diretorias finalísticas, defendemos um desenho mais racional que o de 2015, em que as políticas agrárias e fundiárias tenham um fluxo mais coerente e linear, combatendo divisões internas e sobreposições. Do cadastro rural e da governança fundiária permanente se originam as intervenções estatais como a reforma agrária e a regularização fundiária. A fiscalização, portanto, atende a várias demandas e a eventual obtenção de terras obedece à demanda social e observa aspectos técnicos e legais.
Diante do tamanho do desafio, acreditamos que a área de governança fundiária pode se dividir em duas: i) uma diretoria poderia abarcar Cadastro Rural e Cartografia (incluindo o desafio da integração cadastral), a Fiscalização Agrária (fiscalização cadastral e da função social) e os Recursos Fundiários (englobando aqui a obtenção de terras em suas diversas formas); e ii) uma diretoria própria de Regularização Fundiária, que envolveria o desafio colossal da regularização na Amazônia Legal, em outras áreas sensíveis como no Semiárido e no Matopiba, a demarcação e regularização de territórios quilombolas e até mesmo a titulação de assentamentos, que pode agregar políticas de monitoramento de áreas reformadas (de modo a evitar a reconcentração fundiária, garantir o cumprimento do disposto no § 1º do art. 22 da Lei nº 8.629/1993, constituindo-se zonas exclusivas de agricultura familiar) e apoio à sucessão rural de assentados.
Acreditamos que a Diretoria de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento poderia assumir uma envergadura de Diretoria de Projetos de Reforma Agrária pura, atuando no ciclo dos projetos desde a criação formal dos projetos, na seleção de famílias e implantação dos projetos, nos projetos de infraestrutura, desenvolvimento e consolidação dos assentamentos, incluindo a concessão de créditos, assistência técnica, cooperativismo, agroindustrialização e inclusão produtiva.
Propomos, ainda, a criação de uma unidade fixa de inteligência territorial na Diretoria Estratégica, que, assim, poderá abrigar questões transversais (como mercados de terras e questões ambient) e terá contornos de atividade finalística e ajudará o órgão a fazer análises, pensar o território e a divulgar o trabalho da autarquia sistematicamente em produtos como: relatórios de mercados de terra, anuários da reforma agrária, quadro-geral do campo brasileiro, índices de produtividade, zoneamento rural etc., com a exploração midiática que isso merece.
Reestruturação das carreiras e recomposição de servidores
O quadro funcional atual, tanto do Incra quanto do MDA, é crítico. O Ministério tem menos de 100 servidores nativos, remanescentes do último concurso para a pasta realizado em 2008, e que está prestes a completar 15 anos. Em 2013, a pasta chegou a fazer um concurso para admissão de temporários, dos quais restam 22, hoje lotados na Diretoria de Governança Fundiária do Incra, cujos contratos encerram-se em julho deste ano e cujas possibilidades legais de prorrogação já se exauriram. Neste restabelecimento, o Ministério conta com muitos servidores requisitados, principalmente do Incra.
Contudo, a autarquia vive situação parecida. Segundo o relatório de cargos providos e vacâncias do Executivo federal [10] do final de 2022 e dados apresentados pelo próprio presidente César Aldrighi em entrevista [11], o órgão tem hoje pouco mais de 2.600 servidores e quase 4 mil cargos vagos, sendo que cerca de 40% dos atuais servidores em atividade já reúne condições para se aposentar.
A solução para a recomposição, portanto, está na realização de concurso público e não se pode admitir que essa recomposição recorra a atalhos e paliativos, como a contratação excessiva de consultores, a terceirização por TEDs (termos de execução descentralizada, que ferem as atribuições de servidores efetivos) ou a contratação de temporários. Em 2022, o Tribunal de Contas da União (TCU) acatou denúncia do SindPFA para impedir a realização de processo seletivo para a contratação de mão-de-obra temporária e afirmou que é imperioso que o Incra recomponha seu quadro funcional através de concurso para servidores efetivos.
Antes disso, porém, consideramos essencial realizar a reestruturação das carreiras dos servidores, que há muito tempo são desvalorizados, com remunerações inferiores às carreiras das demais autarquias assemelhadas e muito aquém das carreiras do Ministério da Agricultura (com as quais teve a mesma vinculação até 2022). Além disso, no Incra, têm, entre si, sobreposições de atribuições, lacunas, desvio de função e certa insegurança jurídica na atuação, pois suas balizas já não atendem à realidade e à complexidade da missão após mais de 20 anos da sua criação originária no início dos anos 2000.
Isso posto, a reestruturação precede o concurso público porque realiza as alterações que são necessárias com os menores impactos financeiros e jurídicos possíveis no quadro atual e cria um ambiente mais propício para prospectar melhores quadros para a recomposição das instituições. Nesse aspecto, defendemos também a qualificação do concurso, desde a escolha dos temas e a exigência de prova discursiva, de modo a buscar candidatos com identificação com a pauta, como na realização de curso de formação para os ingressantes, como parte do processo, de modo a otimizar o trabalho e a rápida busca de resultados.
O SindPFA tem proposta de reestruturação da carreira que representa, materializando demandas da categoria, fortalecendo a atuação técnica e finalística, ampliando o espectro de atuação e as formações que a compõem, simplificando a estrutura de cargos e funções, modernizando as atribuições profissionais e eliminando sobreposições, desvio de função e a insegurança jurídica na atuação funcional. São elementos que não trazem impacto financeiro imediato, são possíveis e oportunos de se implementar já.
Aliás, acreditamos que a alteração, nesse momento, pode abranger a incorporação de profissionais do MDA na constituição de carreiras com atuação transversal no Ministério e no Incra, tal como ocorre no Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, possibilitando uma gestão de pessoas mais integrada, o reequilíbrio periódico da força de trabalho com o trânsito entre as instituições, e a perenização do Ministério, vez que pastas fortes têm carreiras próprias. Ocorrendo isso, o concurso poderia ser um só, para ambos os órgãos.
Como está prevista para maio a reabertura da mesa de negociação com o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), esperamos ter espaço para tratar desse assunto com o MDA já no curto prazo.
Revisão de normativos
Na esfera normativa, é primordial começar com a revogação de normativos que objetivam obstaculizar ou suspender a reforma agrária, já levantados na fase de transição governamental. Para aqueles que precisam ser revistos para edição de novo normativo, que sejam criados grupos de trabalho das áreas técnicas para propor novas versões.
Ao cabo, as mudanças almejadas ensejariam até mesmo a atualização da Lei nº 8.629/1993 e, quiçá, o compêndio desta com outras legislações de relevo, como o próprio Estatuto da Terra, culminando num código agrário atualizado. Sabendo das dificuldades, porém, vamos por partes, caminhando levemente para esse objetivo final. Acreditamos, ainda, que esse pode ser, em alguns anos, o caminho natural a partir dos esforços que aqui se propõe, sem prejuízo de outros, e em função dos seus resultados. E — por que não? — um novo Plano Nacional de Reforma Agrária.
Memorando-Circular nº 1/2019
Um exemplo emblemático é o Memorando-Circular nº 1/2019, do então presidente do Incra João Carlos de Jesus Corrêa, que determinou, no início daquele ano, a suspensão das vistorias de imóveis rurais para fins de obtenção de imóveis e dos processos administrativos, situação que ainda persiste. É infame que um instrumento tão burlesco tenha sido usado para suspender um programa nacional de tão grande relevância, mas isso ocorreu nos últimos quatro anos e, portanto, merece ser definitivamente superado.
A não realização de vistorias, ainda que estas não resultem em desapropriação, é, sobretudo, uma flagrante desobediência do mandato constitucional de fiscalização da função social da propriedade rural e obstáculo para a fiscalização agrária exercida pelo órgão como um todo, que tem várias outras implicações, como no preço de terras, na produção de alimentos e na preservação ambiental.
Atualização dos índices de produtividade
A verificação do cumprimento da função social da propriedade rural no aspecto produtivo envolve a análise da produção agrícola segundo parâmetros previamente estabelecidos. A Lei nº 8.629/1993, em seu art. 11, estabelece que: “Os parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de produtividade serão ajustados, periodicamente, de modo a levar em conta o progresso científico e tecnológico da agricultura e o desenvolvimento regional, pelos Ministros de Estado do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura e do Abastecimento, ouvido o Conselho Nacional de Política Agrícola”. No entanto, os índices utilizados como referenciais para quantificar a produtividade da terra pelo Incra na fiscalização da função social são baseados em dados de produção de 1975, ou seja, de quase meio século atrás.
Segundo a Embrapa [12], entre 1975 e 2017, a produção de grãos, que era de 38 milhões de toneladas, cresceu mais de seis vezes, atingindo 236 milhões, enquanto a área plantada apenas dobrou. Nas lavouras, o trigo teve aumento de rendimento (quilos por hectare) de 346%, o arroz de 317%, o milho de 270% e a soja e o feijão praticamente dobraram o rendimento no período. Na pecuária, o número de cabeças de gado bovino no país mais que dobrou nas últimas quatro décadas, enquanto a área de pastagens teve pequeno avanço. Ou seja, os índices de produtividade que remontam à década de 70 são irreais e, para fins de cumprimento da função social, são completamente artificiais.
Ainda de acordo com a própria Embrapa, “a agricultura se modernizou, mas ainda há grande concentração de riqueza em pequena parcela de propriedades rurais, existem milhões de hectares de solos e pastagens degradados, há grande ineficiência no uso de água na irrigação, e o uso inadequado de agroquímicos oferece riscos à saúde e ao meio ambiente, entre outros problemas”. Diante disso, a reforma agrária é solução necessária e a não atualização dos índices de produtividade significa a condescendência com esse cenário de destruição e desigualdade.
Vale lembrar que os mesmos índices de pecuária utilizados para a fiscalização da função social da propriedade também são utilizados para fins de tributação rural e, dessa forma, a artificialidade dos índices representa uma renúncia de receita, o que afronta a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal, e vai na contramão de uma tributação considerada justa. Um estudo do Instituto Escolhas de 2019 [13] apontou que a atualização da tabela de lotação da pecuária em 40% teria um aumento na arrecadação do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) de aproximadamente R$ 8,5 bilhões. Parte desse montante já seria suficiente para um salto nas políticas agrária e fundiária.
Em 2014, um estudo institucional chamado “Proposta de Atualização Institucional do Incra” escreveu que: “A disseminação da tecnologia está permitindo que haja uma homogeneidade dos índices alcançados de produtividade física. São poucas as propriedades rurais com boas terras e bem localizadas que sofrerão a sanção constitucional da desapropriação em função dos indicadores de produtividade física”, no que a imprensa chamou de “desistência” da pauta de atualização dos índices de 1975.
Na verdade, sabe-se que a atualização sempre sofreu resistências do setor produtivo e não seria diferente numa nova tentativa. Naquele mesmo estudo, propõe-se “debater um índice de sustentabilidade em vez da produtividade física”. A proposta é interessante e estruturante, à medida em que acresce elementos da agenda de preservação ambiental e até mesmo outros que a Lei comportar dentro do conceito da função social, que está evoluindo para função socioambiental, e, portanto, merece prosperar.
Nada obstante, esse é um assunto que precisa entrar em pauta e, para isso, talvez seja necessário provocá-lo com a busca pela atualização dos índices de produtividade atualmente utilizados. Ainda que esse movimento possa vir a ser freado pelas resistências de sempre, o processo pode desencadear a busca por outras alternativas, talvez recorrendo aos índices da própria Embrapa, ainda que admitido certo grau de elasticidade, ou, quiçá, pelo estabelecimento de parâmetros mais completos no espectro socioambiental.
Revisão dos módulos fiscal e rural
Com pior desatualização —e fruto da desatualização dos índices de produtividade— encontram-se os cálculos de área dos módulos fiscal e rural, que balizam muitas políticas públicas, inclusive e principalmente as executadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e pelo Incra, como a caracterização do tamanho do imóvel rural para fins de sujeição à reforma agrária e admissibilidade à regularização fundiária.
Segundo o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964), em seu art. 5º, “A dimensão da área dos módulos de propriedade rural será fixada para cada zona de características econômicas e ecológicas homogêneas, distintamente, por tipos de exploração rural que nela possam ocorrer”. No seu art. 50, §§ 2º e 3º, pela redação dada pela Lei nº 6.746/1979, traz:
§ 2º O módulo fiscal de cada Município, expresso em hectares, será determinado levando-se em conta os seguintes fatores:
a) o tipo de exploração predominante no Município:
I – hortifrutigranjeira;
II – cultura permanente;
III – cultura temporária;
IV – pecuária;
V – florestal;
b) a renda obtida no tipo de exploração predominante;
c) outras explorações existentes no Município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada;
d) o conceito de “propriedade familiar”, definido no item II do artigo 4º desta Lei.
§ 3º O número de módulos fiscais de um imóvel rural será obtido dividindo-se sua área aproveitável total pelo módulo fiscal do Município.
No entanto, os últimos cálculos para definição da área de módulos rurais datam de 1973 [14]. Em 2022, foi editado novo normativo [15], mas apenas para unificar o disposto em vários normativos anteriores, dispersos e alguns até já revogados tacitamente, não modificando os valores do normativo da década de 70.
A atualização exige revisar tanto o método de cálculo quanto os índices de rendimento das culturas, bem como a rentabilidade que elas proporcionam, para se encontrar a área necessária para cada tipo de exploração rural que permita a subsistência e o progresso social e econômico de uma família no meio rural, que é o conceito da propriedade familiar. Portanto, ela pode ser realizada no mesmo conjunto de revisão normativa dos índices de produtividade.
Ampliação da proteção legal a áreas preservadas, mas vulneráveis
A Lei nº 14.119/2021, que instituiu a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, alterou a Lei nº 8.629/1993 no que diz respeito às áreas não aproveitáveis do imóvel rural para prever o inciso V:
Art. 10. Para efeito do que dispõe esta lei, consideram-se não aproveitáveis:
V – as áreas com remanescentes de vegetação nativa efetivamente conservada não protegidas pela legislação ambiental e não submetidas a exploração nos termos do inciso IV do § 3º do art. 6º desta Lei.
Tal mudança reduziu sobremaneira as possibilidades de caracterização de propriedades como improdutivas e, portanto, de desapropriação pelo aspecto produtivo, uma vez que as áreas que o proprietário optar por manter ociosas não podem ser assim consideradas.
Embora seja louvável como incentivo à preservação ambiental, são áreas vulneráveis, pois o proprietário as pode utilizar quando quiser. Por isso, seria interessante prever um compromisso maior do proprietário para com a preservação dessas áreas, como pela ampliação da reserva legal ou o prévio cadastro de uma categoria de reserva voluntária, como servidão florestal/ambiental, ainda que temporária, para que não sirva ao ímpeto de aumento de área de produção numa primeira oportunidade.
Nesse aspecto, é importante verificar a possibilidade de fazer isso em sede de regulamentação da Lei, via decreto ou normativos do Incra.
Revisão do enquadramento para a contribuição sindical rural
O Decreto-Lei nº 1.166/1971 define como trabalhador rural quem trabalha individualmente ou em regime de economia familiar em área de até 2 módulos rurais, e como empregador rural quem o faz em área superior a 2 módulos rurais, mesmo que não tenha empregado. Esse parâmetro define a destinação da contribuição sindical rural entre as entidades do sistema de representação de trabalhadores e patronal, respectivamente.
A Lei nº 8.629/1993, contudo, em seu art. 4º, define como pequena propriedade o imóvel rural de área de até quatro módulos fiscais, que geralmente caracteriza a agricultura familiar e é baliza para várias políticas agrárias e de desenvolvimento rural. Também no § 1º do art. 22, acrescido pela Lei nº 13.001/2014, com redação dada pela Lei nº 13.465/2017, estabelece o limite de quatro módulos fiscais para a junção de áreas reformadas. Portanto, deveria ser também este o parâmetro para o enquadramento da contribuição sindical rural.
Isso posto, em se atualizando os índices de produtividade, módulos rurais e fiscais, é importante realizar a alteração do enquadramento sindical do Decreto-Lei nº 1.166/1971 de trabalhadores também para área de até 4 módulos fiscais, uma vez que novos parâmetros podem reduzir a área de um módulo e o agricultor que hoje tem menos de dois módulos passaria ter mais e seria classificado como empregador, indo para a base patronal. Isso tem repercussão na aposentadoria rural e outros enquadramentos, como para a condição de segurado especial da previdência e aptidão para as políticas da agricultura familiar.
Fiscalização sistemática da função social
O ministro Paulo Teixeira tem dito que “quando os movimentos souberem de alguma terra improdutiva, basta indicá-la para o Incra” [16]. De fato, a participação dos movimentos sociais é de extrema relevância para desencadear os processos de reforma agrária e isso é amparado pelo Decreto nº 2.250/1997 (que o governo anterior inclusive ensaiou revogar [17]). Nada obstante, acreditamos que essa é apenas uma forma e o Incra não deve atuar somente a reboque dos movimentos sociais.
A nosso ver, a função social da propriedade é o principal fio condutor que percorre a correta ocupação territorial, o simultâneo enfrentamento às mudanças climáticas e à fome, do estabelecimento de novas formas de relacionamento com o meio ambiente e de promoção do desenvolvimento sustentável. Por isso, deve ser objeto de uma fiscalização agrária sistemática e permanente, resultante de um diagnóstico de monitoramento cadastral, por vistorias e por monitoramento remoto, por amostragem etc.
Isso posto, defendemos que, se descumprida, não pode ter como remédio único a desapropriação, pois nem sempre é viável, como a possibilidade de lavratura de multas (algo para uma nova legislação) ou, no mínimo, do lançamento do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) devido em face da realidade encontrada em campo, o que já seria possível mediante convênio com a Receita Federal, instrumento que é já possibilitado na Lei nº 9.393/1996.
E, quando se verificar o cumprimento, pode também ser objeto de implicações positivas, com o estabelecimento ou inclusão desse elemento em uma certificação ou selo de regularidade que possibilite vantagens econômicas e tributárias, facilite o acesso a crédito e políticas de fomento e seja diferencial para exportações e negociações comerciais ou negócios com o Estado.
Ampliação das vias de obtenção de terras para a reforma
Como já descrito, há dificuldades na desapropriação para a reforma com base no aspecto meramente produtivo, face à desatualização dos índices de produtividade, desconsideração de áreas não aproveitáveis, mas preservadas, além da não viabilidade técnica para a implantação de assentamentos em áreas remotas ou pelo custo. Já nos últimos anos, vinha predominando a aquisição de imóveis rurais para a reforma agrária por meio de compra e venda, nos moldes do Decreto nº 433/1992. Mas há alternativas.
Adjudicação de imóveis de grandes devedores da União
Uma via relevante para viabilizar a reforma agrária sem maiores custos de obtenção de terras, especialmente nesse momento de poucos recursos para desapropriações, é a de adjudicação de imóveis de grandes devedores da União. Felizmente, foi noticiado que a possibilidade já está em estudo pelo governo [18].
Em 2015, com base na lista dos devedores acima de R$ 50 milhões, Incra e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) analisaram quais deles são donos de imóveis rurais, cruzando os dados dos grandes devedores com o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e e Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), e identificaram que, dos 4.013 contribuintes que devem individualmente mais de R$ 50 milhões à União (a dívida total deles era superior a R$ 900 bilhões), 729 tinham 4.057 imóveis rurais, somando um total de 6,564 milhões de hectares.
Esse quantitativo de terras seria o suficiente para ter assentado aproximadamente 200 mil famílias de agricultores rurais sem terra. Contudo, isso não avançou desde então. Ao que parece, exigia-se do Incra, mesmo para esses casos, o “desconto” de seu orçamento, como se fosse gasto. Isso também deve ser tratado agora, com a revisão desse entendimento jurídico ou com a criação de uma rubrica para tal, de preferência antes ou na confecção da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento para o próximo ano, para que não se inviabilize esta via útil de compensação por questões meramente burocráticas, a despeito de seus resultados representarem duplo benefício: para a reforma agrária e a recuperação de ativo oriundo de débito fiscal.
Reforma agrária onde se encontrar trabalho análogo à escravidão
Como tratamos em texto específico [19], dados os lamentáveis episódios de trabalho análogo à escravidão em propriedades rurais verificados recentemente, existe uma oportunidade ímpar de se avançar na reforma agrária nesses imóveis com a atenção que o tema vem recebendo da imprensa e da sociedade civil brasileira.
A Emenda Constitucional nº 81/2014 alterou o art. 243 do texto constitucional para estabelecer expropriação dessas propriedades e destinação à reforma agrária, sem indenização ao proprietário. Contudo, esse dispositivo está pendente de regulamentação. Defendemos que o governo atue para suprir essa lacuna, seja com a proposição ativa de um regulamento via medida provisória ou projeto de lei, seja apoiando iniciativas já existentes e tramitando no Congresso Nacional:
–PL 5970/2019 – Sen. Randolfe Rodrigues (Rede/AP);
–PL 1678/2021 – Sen. Rogério Carvalho (PT/SE) e Paulo Paim (PT/RS);
–PL 777/2023 – Dep. Felipe Becari (União/SP);
–PL 978/2023 – Bancada do PSOL; e
–PL 1102/2023 – Dep. Reginete Bispo (PT/RS).
O Incra e o MDA podem avaliar, também, o ingresso, por meio da AGU, nas ações que correm no STF: a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 77 [20], ingressada pelo procurador-geral da República, e o Mandado de Injunção Coletivo (MI) 7440 [21], protocolado pela Defensoria Pública da União (DPU).
No âmbito administrativo, apesar da pendência de regulamentação, o Incra fez um movimento importante em 2015 com a Instrução Normativa nº 83/2015, buscando normatizar a fiscalização dos imóveis constantes no Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo, a partir dos processos administrativos de fiscalização do Ministério do Trabalho, ainda que pela via de desapropriação baseada na função social, e não expropriação.
Esse trecho foi objeto de questionamentos e pareceres contrários à época no Ministério da Agricultura, e que levaram à sua suspensão temporária, mas já parecem superados pelos esforços e manifestações da Procuradoria do Incra, cujo entendimento de validade tem sido referendado pela Advocacia Geral da União [22].
A nosso ver, como impulso para colocar o tema na ordem do dia e incentivar Parlamento e Judiciário a discuti-lo, defendemos que o Incra deve prosseguir com a fiscalização de imóveis rurais onde se encontrou trabalho análogo à escravidão, enfrentando a questão no âmbito dos dispositivos constitucionais da função social já regulamentados (arts. 184-186 da CF), via Lei nº 8.629/1993, até que venha a regulamentação do dispositivo constitucional pendente, uma vez que o vácuo deste não impede a aplicabilidade daqueles, ainda que pela via da desapropriação onerosa —que, talvez, possa ser revertida posteriormente em regulamentação ou interpretação judicial ulterior. Nada vem da inércia e provocar isso certamente encorajará outras ações.
Uso de terras públicas para a reforma agrária
Por sua vez, a destinação de terras públicas para a reforma agrária deve ser analisada não somente levando em conta a priorização dada pelo art. 188 da Constituição Federal e o art. 13 da Lei n° 8.629/1993, como também privilegiar as demais formas de destinação de terras públicas previstas na carta constitucional, como o reconhecimento das terras indígenas e dos territórios quilombolas, a criação de unidades de conservação e o reconhecimento de direitos fundiários da diversidade de povos e comunidades tradicionais, por meio de modelos voltados para a proteção das diversas formas de vida e manutenção e recuperação dos recursos naturais.
A destinação de terras públicas para novos assentamentos, repetindo modelos já testados e fracassados, como os da colonização, devem ser vistos com muito cuidado, dado os problemas ambientais decorrentes e a própria viabilidade econômica e social dos projetos. Vale lembrar que o MPF já processou o Incra por promover desmatamento na Região Amazônica [23] e isso não é algo que se queira repetir.
Talvez, numa convergência da agenda ambiental com a agrária, se possa propor novos modelos de projetos de assentamento, voltados prioritariamente à proteção e à recuperação da floresta, com potencial de produção de sementes e mudas nativas para seus entornos, o manejo florestal e de produtos não madeireiros como alternativas à exploração tradicional que demanda abertura (desmatamento) de novas áreas, respeitando a dinâmica de uso, organização social e o conhecimento das populações tradicionais.
O modelo pode ser aplicado não só nestes novos casos, como também nos imóveis onde tenham sido constatados crimes ambientais.
Revisão da política de titulação
Nos últimos anos, o Incra foi reduzido a um órgão de mera emissão de títulos para ofertar terras no mercado. O apetite dos interessados levou a uma titulação contraditória e irresponsável, muitas vezes baseada em declarações ou antes da consolidação dos assentamentos. O “sonho” do título (associado ao sonho da casa própria) foi criado no imaginário dos assentados da reforma agrária e isso não vai acabar. É preciso, portanto, manter a titulação, mas criar uma nova identidade própria para essa política e para a regularização fundiária.
Combate à reconcentração fundiária em áreas reformadas e apoio à sucessão rural
A Lei nº 13.001/2014 deu nova redação ao art. 22 da Lei nº 8.629/1993.
Art. 22. Constará, obrigatoriamente, dos instrumentos translativos de domínio, de concessão de uso ou de CDRU, cláusula resolutória que preveja a rescisão do contrato e o retorno do imóvel ao órgão alienante ou concedente, no caso de descumprimento de quaisquer das obrigações assumidas pelo adquirente ou concessionário.
§ 1º Após transcorrido o prazo de inegociabilidade de 10 (dez) anos, o imóvel objeto de título translativo de domínio somente poderá ser alienado se a nova área titulada não vier a integrar imóvel rural com área superior a 2 (dois) módulos fiscais.
§ 2º Ainda que feita pelos sucessores do titulado, a alienação de imóvel rural em desacordo com o § 1º é nula de pleno direito, devendo a área retornar ao domínio do Incra, não podendo os serviços notariais lavrar escrituras dessas áreas, nem ser tais atos registrados nos Registros de Imóveis, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e criminal de seus titulares ou prepostos.
Depois, a Lei nº 13.465/2017 elevou o limite da área do § 1º a quatro módulos fiscais, coerente com a classificação de pequena propriedade, e reescreveu o § 2º para “Na hipótese de a parcela titulada passar a integrar zona urbana ou de expansão urbana, o Incra deverá priorizar a análise do requerimento de liberação das condições resolutivas”, deixando de explicitar a nulidade.
Ainda assim, o dispositivo do § 1º é instrumento valioso para o combate à reconcentração fundiária e, quiçá, o estabelecimento de zonas exclusivas de agricultura familiar, mas isso precisa ser melhor acompanhado e fiscalizado pelo Incra. Ideal, numa próxima revisão legislativa ou mediante convênio com o sistema de registro público desde logo, prever a necessidade de prévia consulta ao Incra para a lavratura de título translativo de domínio de imóvel em área reformada.
Outra proposta relevante (sistematizada pelo ex-presidente do Incra Carlos Guedes e parte do programa de Edegar Pretto ao governo do RS em 2022) consiste em facilitar a sucessão rural de assentados e pequenos agricultores para seus filhos e ampliação do número de jovens na gestão das propriedades familiares com o patrocínio do trâmite jurídico e das taxas da doação da parcela rural em vida dos pais para os filhos, com a reserva de usufruto, antecipando-se à necessidade de uma futura regularização fundiária com espólios e inventários das propriedades, que são custosas e desincentivam a permanência na terra.
Considerações finais
Passadas as fases de campanha eleitoral e transição governamental, e chegado o momento de governar, a realidade se impõe. Por isso, os ideais devem encontrar propostas de cunho prático para que as mudanças e melhorias pretendidas possam ser implementadas e tenham possibilidade de prosperar, considerando as necessidades, mas também as limitações fiscais, as dificuldades operacionais e a correlação de forças políticas que, necessariamente, são e serão enfrentadas. É o que fazemos aqui, num genuíno propósito de contribuir com o êxito da política de reforma agrária, ainda tão necessária, e nos colocamos, desde já, à disposição para discuti-las e ajudar a implementá-las.