Sábado, 14 de Dezembro de 2024

Nota sobre a proposta de “atualização” do Incra
Direção consolida o processo de desmonte da autarquia, em desacordo com o discurso de Patrus Ananias

O presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, Carlos Mário Guedes de Guedes, entregou ao novo ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, um documento com o que chama de proposta de “atualização” do Incra. É uma autodefesa de sua gestão, com o propósito de “se encaixar no novo governo”, agora sob uma orientação diferente de sua corrente partidária (DS) no comando do MDA.

De plano, percebe-se que o documento colide frontalmente com o que se ouviu do novo ministro em seu discurso de posse. Faz um balanço positivo no mínimo exagerado da atual gestão e apresenta propostas para a autarquia sem ter havido qualquer processo de discussão com os servidores e suas entidades representativas nem tampouco com a sociedade civil, com lhe tem sido de praxe.

No centro da proposta, está a clareza da continuidade do processo de desmonte e paralisia do órgão, que já é uma realidade. O chamado “marketing de fumaça”, com muito anúncio e pouco conteúdo. A consolidação de uma maquiagem para a indubitável opção de governo de não fazer reforma agrária e preterir o ordenamento do território.

O SindPFA, na expectativa de contribuir com o aprimoramento do debate, das relações e decisões acerca da reestruturação da autarquia tão necessária ao desenvolvimento do país, faz uma análise crítica pontuada sobre as atividades da atual gestão, contidas no documento apresentado, e chama ao debate a categoria, os demais servidores, organizações e autoridades.


Reforma Agrária e democratização do acesso à terra

Alardeia grandes resultados na democratização do acesso à terra no período em que raras foram as criações de novos assentamentos e, sem constrangimentos, utiliza-se até de substituição de assentados em lotes vagos de terras já reformadas para alavancar as estatísticas. Os números de programas como a reforma agrária nos últimos quatro anos só não são piores que os de Collor desde a redemocratização. Dilma Rousseff é responsável por apenas 3% do total das áreas desapropriadas para esse fim desde 1995.

São perfeitamente justas as reclamações dos movimentos sociais nesse sentido – vide notas da CPTMST. É sintomático que, no documento, a Diretoria de Obtenção de Terras, responsável pelos processos de desapropriação, foi solenemente esquecida no expediente.

A visão equivocada da política de Estado e desalinhada com as afirmações de Patrus Ananias é evidenciada no documento, quando subestima deliberadamente a demanda para reforma agrária no Brasil. Estaria o presidente do Incra, órgão ligado ao MDA, concordando com a polêmica fala de Kátia Abreu de que o país não tem mais latifúndios?

Corrobora esse pensamento a dificuldade que coloca em desapropriar por improdutividade. No mês e ano em que o Estatuto da Terra completa 50 anos, o Presidente do Incra chegou a afirmar em audiência pública que não é possível mais fazer reforma agrária como definida na lei e que seria necessário mudar a Constituição. Em que pese a necessidade de debater os índices de produtividade utilizados pelo Incra – imutáveis desde a década de 70 e que não acompanharam o processo tecnológico -, o órgão não faz efetivamente a fiscalização da função social da terra, prevista na Constituição Federal, o que já seria capaz de promover uma grande distribuição de terras, incentivar o aumento de produção e combater a especulação no mercado de terras.

Não é só isso que vai ao encontro do que prega a nova ministra da Agricultura, com quem o presidente do Incra reuniu-se no final de 2012, quando a prometeram “trabalhar com uma nova mentalidade” – veja a notícia -, a exemplo da titulação de assentamentos, simplificação da certificação do georreferenciamento de imóveis rurais, entre outros.


SIGEF

A simplificação dos procedimentos do georreferenciamento não demorou a ser anunciada. A cúpula apresentou com pompa um pretenso sistema de gestão fundiária, o SIGEF, como a solução que o país precisava. No entanto, a menina dos olhos dessa gestão foi lançada precocemente e sem as conexões necessárias com os sistemas existentes, como o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) que, a propósito, já é bastante deficitário.

O que deveria ser a base para um cadastro multifinalitário e contribuir para a segurança jurídica no campo na verdade a compromete. Seu atual funcionamento faz com que recaia unicamente sobre o profissional contratado a responsabilidade sobre as peças técnicas necessárias à certificação, o que não atende a legislação. O sistema somente atesta que não há sobreposição.

O sistema, da forma como está funcionando, é uma bomba-relógio: causará prejuízo à sociedade e à Administração Pública. O estrago já pode ser gigantesco: em dezembro, Incra e MDA informaram que 63,3 milhões de hectares foram certificados pela ferramenta em 2014. Não é por acaso que o Ministério Público Federal abriu inquérito para apurar irregularidades a partir de denúncia do SindPFA.


Desenvolvimento e titulação de Assentamentos

A questão da titulação de assentamentos já vinha sendo propalada pelo presidente do Incra e ressurge agora na proposta. É pacífico que o Estado não pode ser o tutor ad eterno dos assentamentos da reforma agrária e que a titulação dessas terras deve ser uma política permanente. Entretanto, propõe-se titular os assentamentos de reforma agrária em apenas três anos. Alguns cultivos levam esse tempo ou mais para atingir um nível de produção satisfatório.

A titulação em massa não garante que a família do pequeno agricultor subsistirá com o afastamento precoce das políticas públicas e, mais que isso, pode contribuir com a reconcentração de terras e anular um dispendioso processo de reforma. A proposta passa por cima do processo de desenvolvimento e consolidação dos projetos, o que coloca em xeque a já desacreditada qualificação do processo de reforma agrária e instalação de assentamentos alardeada pelos governantes.

Tal pretensão paralisa o processo de vistoria e identificação das áreas ocupadas irregularmente nos projetos de assentamento, sob a alegação que é um processo caro e com a falácia de que a Sala da Cidadania resolveria em parte esse problema. Na verdade, sem a presença do Estado, o espaço fica livre para todo o tipo de irregularidades na ocupação das terras.

Outro ponto altamente questionável é o anúncio de que se tomou a melhor das decisões quando decidiu confiscar o crédito de assentados que estavam apontados nas contas das associações. A medida parte da visão equivocada de que, para se destruir uma doença, se mata o paciente ao invés de tratá-lo. Em detrimento da criação de instrumentos de gerenciamento e fiscalização, prefere-se culpar servidores, organizações e encerrar as políticas enquanto o real problema não é atacado.


Sala da Cidadania

Resultado de um envelopamento de políticas já existentes, como as Unidades Municipais de Cadastro (UMCs) – e portanto, nada de novo -, a chamada Sala da Cidadania é outro ponto do qual se vangloria. Entretanto, é um blefe: resolve pouco dos problemas do público-alvo, ainda tem um sistema precário e está longe de ser uma ferramenta eficaz ou uma revolução gerencial.


Regularização Fundiária e gestão territorial

A promessa de fortalecer a gestão territorial não se sustenta. Além do desconhecimento completo da malha fundiária nacional – vide a existência de um sobrecadastro de 58 milhões de hectares nos sistemas do Incra -, de paliativos como o SIGEF, vê-se que se criou um programa de regularização fundiária na Amazônia (Terra Legal), uma atribuição que é do Incra e foi-lhe retirada com prazo de validade, como se essa fosse uma atividade temporária. Entretanto, depois de cinco anos, só se fez 15% do que anunciaram que fariam em 3.

Recente auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou em sua execução a existência de beneficiários que não atendem aos requisitos, falhas formais em processos, inércia na retomada de áreas, risco de fomento do mercado irregular de posse de terra, entre outros. Não se fala em regularização fundiária no Nordeste e na faixa de fronteira. A insegurança jurídica perpetua-se no rural brasileiro.

relatório aponta uma perda estimada de R$ 230 milhões decorrente da desproporcionalidade do valor cobrado por imóveis titulados, entre outras irregularidades, como a expedição de títulos a pessoas indevidamente, a exemplo de cônjuges que teriam sido beneficiados com mais de uma área, pessoas já falecidas, beneficiários com renda diversa a atividades agropecuárias, beneficiários da reforma agrária e proprietários de terras.

Interessante o registro de que, ao não dar destinação racional e adequada às suas terras, a própria União estaria descumprindo o princípio da função social das propriedades previsto na Constituição. Mais uma evidência de que o trabalho dos gestores caminharam – e caminham – em linha oposta à pregada pelo novo ministro do Desenvolvimento Agrário, que evoca o cumprimento do preceito constitucional.

Com relação à regularização fundiária na faixa de fronteira, nada foi feito. Só no Paraná, são mais de 40 mil títulos à espera de ratificação da União há anos. É isso que se pode chamar de governança fundiária?


Gestão administrativa

O que se viu nos últimos anos foi uma direção centralizadora, que pouco conversa e não aceita críticas. Essa forma autoritária também se revela no trato com os servidores, tanto que o tema praticamente nem é tratado na avaliação de 2011-2014, pois foi vergonhoso. Nas propostas, também não é tratado como devia ser.

A remuneração, em que pese ser uma variável importante, é só uma evidência disso. Hoje, os servidores do órgão amargam um dos piores salários de nível superior do serviço público federal. Para se ter uma ideia, as carreiras de Perito Federal Agrário do Incra e de Fiscal Federal Agropecuário do Ministério da Agricultura têm a mesma origem no serviço público federal, ambas compostas por engenheiros agrônomos. Até 2000, o salário das duas era idêntico. Hoje, porém, o salário do Perito do Incra é tão defasado que no final da carreira, depois de 16 anos de trabalho, é menor que o inicial do colega do outro ministério. Não se paga nem o salário mínimo profissional a algumas profissões, como às diversas engenharias em início de carreira.

As negociações salariais foram um fracasso. No caso dos Peritos, além de não avançar nos valores, fizeram questão de destruir a estrutura da carreira com o aumento somente na gratificação. Não bastasse isso, trapalhadas em 2014 no Congresso resultaram na suspensão do acordo por seis meses, período em que o salário – ineditamente – foi reduzido.

Uma questão emblemática é o fornecimento dos equipamentos de proteção individual (EPIs). Os Peritos Federais Agrários solicitam formalmente ao Incra o seu fornecimento desde 2005 e, principalmente no período recente, os profissionais foram vítimas de diversas formas de assédio moral por causa disso; a direção foi capaz de atribuir aos servidores a culpa pela paralisia de atividades quando elas não puderam ser feitas pela ausência de proteção.

A proteção do trabalhador é algo tão elementar que é de assustar ver ela sendo discutida no âmbito do “atendemos ou não?”, “eles não vão conseguir reconhecimento assim”, prova de quão arcaico é o tratamento dado ao servidor e quão atrasada é a cultura institucional. A situação levou à abertura de vários inquéritos civis no Ministério Público do Trabalho em diferentes estados e o Incra chegou a negar a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta para resolver a questão. Foi preciso que o SindPFA ingressasse com uma ação judicial para ver o Incra cumprir a lei. Em 2014, uma decisão liminar suspendeu as atividades de campo até que os EPIs sejam fornecidos aos servidores. Até hoje, porém, isso não ocorreu na sua integralidade.

É límpida a realidade de uma desmotivação sem precedentes que assola as divisões de trabalho; não há quem tenha esperanças com o cenário que se impõe. Profissionais experientes que outrora foram responsáveis para tornar o órgão forte e reconhecido hoje amargam o desmonte e contam os dias para deixá-lo.


Conclusão

Por fim, lembra-se que, em 2012, ao assumir o Incra, Guedes recebeu do seu antecessor um diagnóstico apurado do órgão e de suas atividades e uma proposta de fortalecimento institucional. Numa situação nitidamente mais agravada, porque o presidente apresenta um novo diagnóstico e propostas bem menos ousadas? É por isso que não dá pra acreditar que haja boa fé na apresentação de um plano de “atualização” de um órgão que está à beira da falência, ainda que sob o argumento de que uma proposta menos ambiciosa é mais factível. Não passa de uma dose de sobrevida, incapaz de tirar a Autarquia da UTI.

Com efeito, o que o Incra realmente precisa é de uma reestruturação completa. Precisa deixar de viver de factóides e assumir seu papel institucional. Ou se faz ou não se faz, mas não dá pra continuar parado e dizer que está fazendo. De modo imediatamente consequente, o órgão precisa de novos gestores, com coragem para admitir a inequívoca realidade e enfrentá-la; com alinhamento político que seja capaz de tornar o discurso do novo ministro minimamente possível.

O SindPFA espera que a autarquia tenha uma gestão com um perfil mais avançado, capaz de enfrentar os desafios que são difíceis, mas necessários para um verdadeiro desenlace positivo para a questão agrária no país.

Por SAVIO SILVEIRA FEITOSA

SEDE / DF