Quinta-feira, 21 de Novembro de 2024

Nota sobre processos de demarcação de territórios quilombolas
Entidade manifesta preocupação com estranhos movimentos no Incra que apontam revisionismos e paralisação de processos de demarcação de territórios quilombolas

O Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários (SindPFA) manifesta preocupação com o noticiamento de revisionismos em curso dentro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em relação ao trabalho da própria instituição na regularização fundiária de territórios quilombolas, por meio de auditorias inusuais, contrárias a pareceres técnicos e jurídicos, com o aparente intuito de paralisar o andamento desses processos e a consequente demarcação de novos territórios, atendendo a questionáveis demandas políticas. Um dos pontos focais é o processo envolvendo o Quilombo Morro Alto, localizado nos municípios de Osório e Maquiné/RS, cuja auditoria, aberta em 2019, atendeu a pedido do deputado federal Alceu Moreira (PMDB/RS), então presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – organização que dá nome à chamada bancada ruralista.

O parlamentar – que é manifestamente contrário à pauta e já incitou o emprego de violência para com essas populações – vem há muito empreendendo esforços no sentido de desqualificar e anular os trabalhos técnicos feitos pelo Incra, pela Fundação Cultural Palmares – antiga detentora da competência de regularização de terras quilombolas – e, neste caso, de equipe contratada por meio de convênio da Fundação com o governo do estado do Rio Grande do Sul. Foi presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) Funai/Incra instalada na Câmara dos Deputados em 2016, que teve este processo de demarcação como um dos principais objetos de atuação.

O processo, de acordo com diversas notas técnicas e jurídicas, mostra-se regular. Nada obstante, face às alegações de 2016, fora reanalisado em sindicância investigatória instalada pelo próprio Incra, que concluiu pela inexistência de vícios no Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), principal peça da regularização. Nada obstante, tem-se notícia de que as áreas técnicas da Superintendência Regional do Incra no estado e de sua Sede buscam, há anos, solução consensuada para o caso, que envolve situação de densa ocupação de agricultores na área tradicionalmente ocupada pela comunidade, mas não houve iniciativa conciliatória por parte da instituição.

Noutro sentido, o Conselho Diretor do Incra decidiu incluir avaliações e ações de controle sobre a regularização fundiária e titulação de áreas de comunidades quilombolas no rol de atividades da Auditoria Interna e, na sequência, encaminhou processos em etapa de apreciação pelo Conselho Diretor e de publicação de Portaria de Reconhecimento para análises de regularidade do seu órgão de controle interno. Informações dão conta de 31 processos de regularização fundiária desse público no órgão de controle interno do Incra para as referidas análises e, com isso, encontram-se paralisados.

Segundo os servidores, a partir de conceitos alheios à regularização de territórios coletivos, e mesmo contrariando manifestações técnicas e jurídicas, o relatório da auditoria acatou o apontamento das supostas irregularidades apresentadas pelo parlamentar, concluindo pela recomendação de anulação do relatório antropológico e, também, de outras peças técnicas do RTID. Ainda, que o trabalho de auditoria não foi discutido em grau adequado com as unidades, contrariando normativos da Controladoria-Geral da União (CGU), tendo sido estabelecidos parâmetros estranhos ao arcabouço legal e à praxe técnico-científica da área.

Salta aos olhos que, mesmo sem decisão definitiva sobre as recomendações, esforços já vêm sendo empreendidos no sentido de elaboração de novo relatório antropológico, já estando em curso procedimento licitatório de contratação, num contexto de drástica redução orçamentária e priorização de processos com decisão judicial. De modo que preocupa, principalmente, a possível utilização desse mecanismo para viabilizar a interferência política em áreas técnicas visando a atender à demanda de setores politicamente influentes, em detrimento das minorias, levando à paralisação de dezenas de processos de demarcação e a revisionismos anômalos e, não raro, preconceituosos, no rastro de atos de fala do presidente da República e de autoridades como o atual presidente da Fundação Palmares.

Se confirmada, tal atuação se mostra grave, desrespeita o corpo técnico do Incra, fere instruções normativas e a rotina técnica e metodológica estabelecida, contraria a própria missão da autarquia na gestão territorial – na qual está incluída a regularização fundiária desses territórios – e, sobretudo, atenta contra o mandato constitucional ao qual se obriga cumprir. Não deve o Incra, no exercício de sua tão importante e cinquentenária missão, se apequenar e se subjugar a interesses particulares e chancelar discriminações em detrimento daqueles a quem lhe cabe guardar por essência, dado ser o órgão de promoção do acesso à terra. Isso posto, a situação requer atenção, correção e apuração.


Nota 1: É emblemático que este episódio surja justamente no momento em que “Torto Arado” é o romance mais lido e premiado do país. Escrito por Itamar Vieira Junior, servidor do Incra, sobre a temática quilombola, evidencia resquícios escravocratas que ainda são ferida aberta no país, cuja atuação do Estado, ao invés de buscar atender a interesses políticos dos mais poderosos e endinheirados, deveria caminhar no sentido da reparação histórica.

Nota 2: Também acaba de ser publicado o livro “Incra 50 anos: a autarquia sob o olhar de seus servidores” e a crônica premiada com o 1º lugar, “Tempos cruzados no Quilombo Cangume”, de Paulo Roberto David de Araujo, trata de um processo de regularização que busca corrigir erros de décadas, teve o RTID concluído em 2017 e que, já podendo ter sido apreciado pelo Conselho Diretor, fora também encaminhado à Auditoria Interna.