Em maio, foi iniciado no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) o Processo nº 54000.067763/2019-88, com um ofício do Presidente do Incra, João Carlos de Jesus Corrêa, à Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), no qual encaminha proposta do Grupo de Trabalho criado pela Portaria Conjunta nº 1/2019, de ambos os órgãos, com o objetivo de propor a reestruturação do Incra.
Embora a natureza dos documentos exponha algo já adiantado, o Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários (SindPFA) ousa fazer aqui uma análise da proposta, objetivando ainda poder contribuir para os objetivos que o GT pretendeu alcançar, tendo em vista que, estando ainda em tramitação no Mapa, pode ser refinada.
O SindPFA fez uma apresentação de suas propostas ao Grupo de Trabalho em 9 de abril, bem como a todo o corpo diretivo do Incra. Contudo, a entidade acredita que pode – e deve – reafirmar algumas posições com maior relevo, com a prerrogativa de quem reúne profissionais que lidam com as políticas públicas no dia-a-dia e que carrega uma carga de anos de discussões técnicas e estruturantes sobre a missão institucional da Autarquia.
De plano, o ofício à Ministra tratou de mencionar a existência no Incra de uma “cultura organizacional permeada pela ideia de impunidade e uma eventual aceitação de desvios de conduta cometidos em diversas áreas de atuação da Instituição, além de frequente inobservância de processos, regulamentos e normas estabelecidos nos regramentos legais”. Quanto a isso, os casos já comprovados, ou com indícios de irregularidades precisam ser enfrentados. Não deixa de causar desconforto, porém, o tom de generalização desse ponto de vista, em detrimento de uma maioria de profissionais sérios, responsáveis e dedicados, não lenientes com a corrupção. Neste sentido, afirmamos o contrário, há, no Incra – e em toda a sua trajetória -, uma cultura de se promover bons e adequados serviços à sociedade, em especial ao público da reforma agrária.
Noutro aspecto a este relacionado, também se diz que “interferências político-partidárias nos processos técnicos da Autarquia impactaram negativamente as sistemáticas de planejamento, coordenação e controle, o que prejudicou gravemente a efetividade e a eficiência das ações do Incra”. Sem dúvida. Nada obstante, o SindPFA acredita que, diante da constatação, a proposta deve ir além, buscando a qualificação da gestão do Incra por meio da regulamentação normativa dos Decretos nº 3.135/1999, 9.667/2019 e 9.727/2019 e a institucionalização de processo seletivo e critérios técnicos e gerenciais no provimento dos cargos no órgão, especialmente no futuro Regimento Interno da Autarquia. O Sindicato crê que esse é o momento oportuno para tal e chegou a minutar regramentos (Processo nº 54000.051093/2019-88).
A preocupação com o combate a malfeitos – coerentemente – se reflete na estrutura proposta, incluindo novos mecanismos de controle na estrutura do órgão, como assessoria de controle interno e ouvidoria geral, novas divisões para a Corregedoria e corregedores regionais para as superintendências, bem como criação de novos cargos, a maioria para estas instâncias. Embora importantes, percebe-se, por outro lado, que não se tratou a fundo o aperfeiçoamento das áreas finalísticas, onde o trabalho que o Incra faz se conecta com a sociedade, de modo que preocupa que o foco se restrinja à moralização do órgão (sem dúvida, necessária), sem, no entanto, apontar as diretrizes de ações programáticas, até porque dessa frágil governança é que derivam os erros.
Quanto às atividades-fim, de certo o Incra precisa resolver o imenso passivo de assentamentos rurais aguardando consolidação e emancipação para virar a página, mas não pode se limitar a isso, é necessário que avance e se firme como órgão gestor fundiário nacional. O documento “Modelo conceitual da macroestrutura do Incra” chega a falar no Incra como órgão federal de Governança Fundiária, mas, com o escopo institucional apresentado, a proposta corre o risco de continuar apenas no conceito.
As conformidades atuais de políticas públicas de governança da terra vão além do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) e do Decreto de criação do Incra (Decreto-Lei nº 1.110/1970), que, embora pertinentes, são insuficientes para apontar uma nova forma de atuação. Esta envolverá a Lei nº 10.267/2001, a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), as diretrizes e recomendações promovidas por organismos internacionais especializados como FAO/ONU (destaque para as Diretrizes Voluntárias para a Governança Responsável da Terra, dos Recursos Pesqueiros e Florestais no contexto da Segurança Alimentar Nacional – DVGT), Banco Mundial (autor de metodologia Estrutura de Avaliação da Governança Fundiária – LGAF, implementada em mais de 30 países na última década), assim como as manifestações do Tribunal de Contas da União (TCU), bem como iniciativas de outros níveis de governo ou de arranjos institucionais envolvendo, inclusive, organizações das partes privadas do setor rural, do agronegócio de exportação, indústria da celulose/reflorestamento etc.
Afinal, todos são atores interessados na segurança jurídica que se busca, que não se resume a obter a malha fundiária georreferenciada de todos os imóveis rurais, pois há necessidade concomitante de caracterizar a dominialidade das terras nos cartórios (se públicas ou privadas, por meio de procedimentos discriminatórios), havendo riscos de ocorrência de vícios graves em cadeias dominiais de imóveis em territórios de agricultura. O custo-Brasil dessa insegurança jurídica mina a todos e precisa ser atacado num contexto mais agressivo.
Nesse sentido, a visão de governança da terra e gestão fundiária consiste num sistema de ferramentas, no qual reforma agrária é uma delas, não a única. A gestão de políticas públicas não pode ficar numa atuação isolada, porque é necessário interação com o conjunto de órgãos, inclusive em outros níveis de governo, e sociedade, o que necessita de uma coordenação, que – acreditamos – deve ser assumida por um órgão que pode ser o Incra. Esse pensamento vai ao encontro do que vem sendo publicizado pelo Ministério, que tem apresentado uma visão racional de cumprimento legal dos direitos e deveres dos diferentes atores-proprietários, que precisam ser regulados e harmonizados.
Vale lembrar que a sociedade já demanda uma estrutura que integre o cadastro rural único ou crie uma estrutura de cadastro rural multifinalitário, ou seja, um órgão de gestão territorial, que possibilite ao Governo planejar e executar suas políticas e que facilite a vida do produtor rural, de modo que, se não for o Incra a se dispor a ser este órgão, outra estrutura poderá se arvorar a sê-lo ou surgir em seu lugar. Apenas para exemplificar, temos um Cadastro Ambiental Rural (CAR), concebido dissonante de uma base fundiária, e do próprio Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), que não se conecta com a base primária, o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR).
Nisso, acreditamos que a responsabilidade do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR), iniciativa de integração concebida pela Lei nº 10.267/2001 e relegada nos últimos anos, deveria estar explicitada como atividade no regimento interno do Incra, assim como os Comitês de Certificação e as Câmaras Técnicas Regionais e Nacional para a uniformização e identificação de mapeamentos de riscos e criação de controles internos para as atividades finalísticas.
Iniciativas como o Grupo de Estudo e Inteligência Territorial (Geit), institucionalizado na minuta do Regimento Interno, deve ser o modus operandi do Incra, descentralizado e expandido às regionais da Autarquia, de modo a permitir maior participação dos servidores, profissionalizar a atuação do órgão nas suas diversas atividades finalísticas e ramificações regionais. É meio de elevar o Incra ao nível de institucionalidade que dele se espera na gestão territorial brasileira, ponta a ponta.
Dito isso, perpetuar a formatação das atuais Diretorias, na visão do SindPFA, não é a melhor alternativa, pois foram com elas que chegamos à situação atual, conhecida por todos. E a solução para tanto não se pode resumir a um choque de gestão, por certo necessário, mas insuficiente às demandas do cenário atual. A não se pensar agora o Incra, ou uma estrutura dele derivada que aponte para esses novos tempos, é o mesmo que decretar o seu fim. Porque a sociedade não esperará o Incra resolver seu conflito existencial para ter o que precisa para se desenvolver. Em outras palavras, manter uma estrutura que remete ao passado, é abster-se de ser o órgão do futuro.
Por fim, o SindPFA acredita que a mudança que o país precisa requer profundidade e ousadia, ainda que se tenha que lidar com o passivo, que pode contar com estruturas extraordinárias, mas não pode ser ele a única ordem do dia. Noutras palavras, o Incra está vendo o futuro com o farol baixo, se não com o retrovisor. É preciso ligar o farol alto e olhar o Incra à frente e se reestruturar para o que está lá a espera.
São essas as considerações do Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários (SindPFA), que o faz mantendo a postura propositiva que lhe é característica, esperando colaborar para uma melhor reestruturação do órgão, especialmente considerando que não se editam com facilidade Decreto com Estrutura Regimental e Regimento Interno, de modo que esta é uma oportunidade singular que pode ser melhor aproveitada.